Émile Durkheim, o criador da sociologia da educação
Para o sociólogo francês, a principal função do professor é
formar cidadãos capazes de contribuir para a harmonia social
Em cada aluno há dois seres inseparáveis, porém distintos.
Um deles seria o que o sociólogo francês Émile Durkheim (1858-1917) chamou de
individual. Tal porção do sujeito - o jovem bruto -, segundo ele, é formada
pelos estados mentais de cada pessoa. O desenvolvimento dessa metade do homem
foi a principal função da educação até o século 19. Principalmente por meio da
psicologia, entendida então como a ciência do indivíduo, os professores
tentavam construir nos estudantes os valores e a moral. A caracterização do
segundo ser foi o que deu projeção a Durkheim. "Ele ampliou o foco
conhecido até então, considerando e estimulando também o que concebeu como o
outro lado dos alunos, algo formado por um sistema de idéias que exprimem,
dentro das pessoas, a sociedade de que fazem parte", explica Dermeval
Saviani, professor emérito da Universidade Estadual de Campinas.
Dessa forma, Durkheim acreditava que a sociedade seria mais
beneficiada pelo processo educativo. Para ele, "a educação é uma
socialização da jovem geração pela geração adulta". E quanto mais
eficiente for o processo, melhor será o desenvolvimento da comunidade em que a
escola esteja inserida.
Nessa concepção durkheimiana - também chamada de
funcionalista -, as consciências individuais são formadas pela sociedade. Ela é
oposta ao idealismo, de acordo com o qual a sociedade é moldada pelo
"espírito" ou pela consciência humana. "A construção do ser
social, feita em boa parte pela educação, é a assimilação pelo indivíduo de uma
série de normas e princípios - sejam morais, religiosos, éticos ou de
comportamento - que baliza a conduta do indivíduo num grupo. O homem, mais do
que formador da sociedade, é um produto dela", escreveu Durkheim.
Essa teoria, além de caracterizar a educação como um bem
social, a relacionou pela primeira vez às normas sociais e à cultura local,
diminuindo o valor que as capacidades individuais têm na constituição de um
desenvolvimento coletivo. "Todo o passado da humanidade contribuiu para
fazer o conjunto de máximas que dirigem os diferentes modelos de educação, cada
uma com as características que lhe são próprias. As sociedades cristãs da Idade
Média, por exemplo, não teriam sobrevivido se tivessem dado ao pensamento
racional o lugar que lhe é dado atualmente", exemplificou o pensador.
Ensino público e laico
Durkheim não desenvolveu métodos pedagógicos, mas suas
idéias ajudaram a compreender o significado social do trabalho do professor,
tirando a educação escolar da perspectiva individualista, sempre limitada pelo
psicologismo idealista - influenciado pelas escolas filosóficas alemãs de Kant
(1724-1804) e Hegel (1770-1831). "Segundo Durkheim, o papel da ação
educativa é formar um cidadão que tomará parte do espaço público, não somente o
desenvolvimento individual do aluno", explica José Sérgio Fonseca de
Carvalho, da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (USP).
Nas palavras de Durkheim, "a educação tem por objetivo
suscitar e desenvolver na criança estados físicos e morais que são requeridos
pela sociedade política no seu conjunto". Tais exigências, com forte
influência no processo de ensino, estão relacionadas à religião, às normas e
sanções, à ação política, ao grau de desenvolvimento das ciências e até mesmo
ao estado de progresso da indústria local.
Se a educação for desligada das causas históricas, ela se
tornará apenas exercício da vontade e do desenvolvimento individual, o que para
ele era incompreensível: "Como é que o indivíduo pode pretender
reconstruir, por meio do único esforço da sua reflexão privada, o que não é
obra do pensamento individual?" E ele mesmo respondeu: "O indivíduo
só poderá agir na medida em que aprender a conhecer o contexto em que está
inserido, a saber quais são suas origens e as condições de que depende. E não
poderá sabê-lo sem ir à escola, começando por observar a matéria bruta que está
lá representada". Por tudo isso, Durkheim é também considerado um dos
mentores dos ideais republicanos de uma educação pública, monopolizada pelo
Estado e laica, liberta da influência do clero romano.
Autoridade do professor
Durkheim sugeria que a ação educativa funcionasse de forma
normativa. A criança estaria pronta para assimilar conhecimentos - e o
professor bem preparado, dominando as circunstâncias. "A criança deve
exercitar-se a reconhecer [a autoridade] na palavra do educador e a submeter-se
ao seu ascendente; é por meio dessa condição que saberá, mais tarde,
encontrá-la na sua consciência e aí se conformar a ela", propôs ele.
"Em Durkheim, a autonomia da vontade só existe como obediência
consentida", diz Heloísa Fernandes, da Faculdade de Ciências Sociais da
USP. O sociólogo francês foi criticado por Jean Piaget (1896-1980) e Pierre
Bourdieu (1930-2002), defensores da idéia de que a criança determina seus
juízos e relações apenas com estímulos de seus educadores, sem que estes
exerçam, necessariamente, força autoritária sobre ela.
A elaboração, adoção e socialização dos Parâmetros
Curriculares Nacionais (PCNs)foi uma grande conquista para a educação
brasileira. Houve padronização na indicação dos conteúdos curriculares e uma
clara demonstração do que o governo espera dos jovens que deixarão os bancos
escolares nos próximos anos. Para o professor Dermeval Saviani, da Unicamp,
esse fato tem certa relação com as concepções de Durkheim. "Os currículos
são sugeridos para todos. Esses documentos mostram as necessidades da
sociedade. Agora, cabe aos estabelecimentos de ensino pegar essas indicações e
moldá-las aos estudantes", explica. "A idéia de fundo é colocar as
pessoas certas nos lugares certos, onde a comunidade precisa", diz.
Biografia
Émile Durkheim nasceu em 1858, em Épinal, no noroeste da
França, próximo à fronteira com a Alemanha. Era filho de judeus e optou por não
seguir o caminho do rabinato, como era costume na sua família. Mais tarde
declarou-se agnóstico. Depois de formar-se, lecionou pedagogia e ciências
sociais na Faculdade de Letras de Bordeaux, de 1887 a 1902. A cátedra de
ciências sociais foi a primeira em uma universidade francesa e foi concedida
justamente àquele que criaria a Escola Sociológica Francesa. Seus alunos eram,
sobretudo, professores do ensino primário. Durkheim não repartiu o seu tempo
nem o pensamento entre duas atividades distintas por mero acaso. Abordou a
educação como um fato social. "Estou convicto de que não há método mais
apropriado para pôr em evidência a verdadeira natureza da educação",
declarou. A partir de 1902, foi auxiliar de Ferdinand Buisson na cadeira de
ciência da educação na Sorbonne e o sucedeu em 1906. Estava plenamente
preparado para o posto, pois não parara de dedicar-se aos problemas do ensino.
Dentro da educação moral, psicologia da criança ou história das doutrinas
pedagógicas, não há campos que ele não tenha explorado. Suas obras mais famosas
são A Divisão do Trabalho Social e O Suicídio. Morreu em 1917, supostamente
pela tristeza de ter perdido o filho na Primeira Guerra Mundial, no ano
anterior.
Tempo de mudanças
A segunda metade do século 19 marca o nascimento de algumas
ciências humanas, como antropologia, sociologia, psicanálise e lingüística.
Charles Darwin (1809-1882), Karl Marx (1818-1883) e Sigmund Freud (1856-1939),
para citar apenas alguns clássicos, estavam formulando as idéias que
reorientariam o pensamento mundial mais tarde, assim como fez Durkheim no campo
da sociologia. A França vivia um período de conflitos - parte da região da
Lorena, onde Durkheim nasceu, foi tomada pela Alemanha em 1871, o que levou à
guerra entre os dois países. Nesse mesmo ano, foi proclamada a Terceira
República Francesa, que implantou medidas políticas inovadoras, como a
instituição da lei do divórcio. Na educação, devido também à influência das
concepções de Durkheim, a Terceira República trouxe a obrigatoriedade escolar
para crianças de 6 a 13 anos e a proibição do ensino religioso nas escolas
públicas, ideais que até hoje estão entre os pilares educacionais naquele país.
Tais transformações foram fundamentais para a preocupação de Durkheim com a
formação de professores para a nova escola laica republicana. Ele viveu também
no período da chamada Segunda Revolução Industrial, quando o motor de combustão
interna, o dínamo, a eletricidade, o telégrafo e o petróleo tomaram a atenção
do mundo todo. Morreu durante a Primeira Guerra Mundial, no ano da Revolução
Russa.
Para pensar
Durkheim dizia que a criança, ao nascer, trazia consigo só a
sua natureza de indivíduo. "A sociedade encontra-se, a cada nova geração,
na presença de uma tábua rasa sobre a qual é necessário construir
novamente", escreveu. Os professores, como parte responsável pelo
desenvolvimento dos indivíduos, têm um papel determinante e delicado. Devem
transmitir os conhecimentos adquiridos, com cuidado para não tirar a autonomia
de pensamento dos jovens. A proposta de Durkheim levará o aluno a avançar
sozinho? Esse modelo de formação externa contraria a independência nos estudos?
Ou será uma condição para que a educação cumpra seu papel social e político?
Quer saber mais?
A Evolução Pedagógica, Émile Durkheim, 325 págs., Ed.
Artmed, tel. 0800-703-3444 (edição esgotada)
Durkheim, José Albertino Rodrigues (org.), 208 págs., Ed.
Ática, tel. 0800-115-152, 27,50 reais
Educação e Sociologia, Émile Durkheim, 132 págs., Edições
70, tel. (11) 3107-0017 (Livraria Portugal, importadora), 47 reais
Sintoma Social Dominante e Moralização Infantil, Heloísa
Rodrigues Fernandes, 219 págs., Edusp e Ed. Escuta, tel. (11) 3865-8950, 33,70
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Acessado em 04/09/2017
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