Gilberto Freyre e a singularidade cultural brasileira
Jessé Souza
Professor do Departamento de Sociologia do ICS - UnB
RESUMO: O texto procura enfatizar o conteúdo
macrossociológico da obra dos anos trinta de Gilberto Freyre. Ao invés dos
temas classicamente vinculados à obra de Gilberto Freyre, como a mestiçagem e a
história da vida privada, o ponto principal da argumentação é reconstruir o
embate entre valores ocidentais da Europa já burguesa, que tomam o país de
assalto a partir de 1808, e os valores tradicionais que Freyre chama de
orientais para se referir ao conjunto de valores africanos, portugueses e
rurais da vida colonial brasileira. Gilberto Freyre desenvolve em Sobrados e
mucambos uma historiografia da institucionalização desses novos valores
ocidentalizantes que se contrapõe, com vantagens, à versão dominante do Brasil
como ainda dominado por valores pessoais e semi-tradicionais.
UNITERMOS: cultura brasileira, cultura ocidental, iberismo,
macrossociologia, Gilberto Freyre.
ABSTRACT:
This article intends to emphasize the macro-sociological content of Gilberto
Freyres work in the 30s. Instead of the themes classically linked to his work,
such as inter-racial mixing and the history of private life, the main point of
this paper is different: it aims to reconstruct the clash between the already
bourgeois European western values, which take over the country in 1808, and the
traditional ones which Freire calls oriental to refer to the set of African,
Portuguese and rural values of Brazilian Colonial life. In Sobrados e mucambos
Gilberto Freyre develops a historiography of the institutionalization of these
new westernizing values which go against the prevaling idea of Brazil as still
being ruled by personal and semi-traditional values.
UNITERMS:
Brazilian culture, western culture, iberianism, macrosociology, Gilberto
Freyre.
Gilberto Freyre é, talvez, o mais complexo, difícil e
contraditório entre nossos grandes pensadores. Sua obra tem permanecido um
desafio constante aos comentadores, como iremos ver a seguir, e a vitalidade de
seu pensamento se mostra no crescente interesse por sua obra. Ele é, talvez, o
mais moderno entre os clássicos do pensamento social brasileiro e suas questões
ganham ao invés de perderem em atualidade.
A enorme dificuldade envolvida numa adequada compreensão de
sua obra resulta de vários fatores combinados. Uma razão importante parece-me a
extraordinária disparidade de sua obra. Enquanto, normalmente, na maioria dos
grandes autores, a obra de maturidade representa uma condensação intelectual
que propicia maior grau de coerência e elaboração dos temas que marcaram a
trajetória intelectual desses autores, Gilberto parece ser uma exceção a essa
regra. Seus melhores livros são escritos ainda na década de trinta, quando o
autor ainda era muito jovem, e dentre eles, além de Casa-grande e senzala,
especialmente Sobrados e mucambos, a sua obra prima no nosso ponto de vista.
Sua obra de juventude é marcada pelo tom aberto,
propositivo, hipotético, o que levou a alguns comentadores a interpretá-lo pelo
paradigma da ambigüidade e da contradição constitutivas. Foi precisamente esse
aspecto aberto, inquisitivo, de sua obra de juventude, que foi substituído na
maturidade por um espírito de sistema fechado, uma compilação de certezas e de
sugestões de intervenção prática e política.
No prefácio de 1969 para a edição brasileira de Novo mundo
nos trópicos, livro originalmente publicado em inglês em 1963, percebe-se essa
torção peculiar da atitude de Freyre em relação aos estudos realizados na
década de 30. Aqui, Freyre pretende responder aos seus primeiros críticos que
reclamavam que ele não concluía, não possuía uma tese central clara, nem muito
menos tinha uma proposição concreta e clara sobre o que fazer.
Essa é certamente uma crítica e uma demanda ao pesquisador
bem brasileira. A pequena distância objetiva e subjetiva entre o domínio da
reflexão, a ciência, e a esfera da ação prática, a política, torna entre nós
quase impossível uma clara divisão de trabalho entre essas duas esferas
complementares. Pede-se, constantemente, o apagamento das fronteiras,
confundindo-se as condições de validade de cada domínio, exigindo-se de uma
esfera o que só é razoável demandar-se de outra.
Gilberto Freyre, seja por oportunismo político, seja por
vaidade pessoal, cede ao apelo. Aqui, talvez, tenham-se encontrado expectativas
objetivas e inclinações pessoais. O certo é que a obra madura de Freyre é uma
espécie de caricatura de sua obra de juventude. O que nesta abre-se à indagação
do leitor, um constante descortinar de aspectos e variantes que se oferecem à
curiosidade e ao escrutínio deste, naquela tende sempre ao enrijecimento, um
fechamento de horizontes e perspectivas.
Efetivamente Gilberto Freyre conclui na sua obra madura.
Conclui transformando algumas de suas brilhantes intuições de juventude acerca
da especificidade e singularidade da formação social brasileira em uma
ideologia nacionalista e luso-imperialista de duvidoso potencial democrático. O
que antes adquiria a forma do questionar-se acerca das peculiaridades e
transformações de uma cultura européia nos trópicos, transforma-se em
tropicologia, um conjunto de asserções de cientificidade duvidosa, carregadas
de impressionismo, mas facilmente utilizáveis como uma ideologia unitária do
tropical e mestiço. Uma ideologia do apagamento das diferenças.
A tropicologia transforma-se, inclusive, em ciência
específica, a qual, já referendada pelos sábios da Sorbonne (Freyre, 1969, p.
20), se dedicaria ao estudo do homem nas condições tropicais. O fato do
elemento mesológico aqui ser o dado essencial não é de forma alguma acidental.
Ao contrário, ele representa o fundamento mesmo daquilo que já foi chamado
concepção neolamarckiana (Araújo, 1993, p. 39) de ciência em Gilberto Freyre.
Essa concepção parte da possibilidade de consideração simultânea de elementos
tão heterogêneos como as influências biológicas, mesológicas e culturais na
determinação da especificidade de uma formação social singular.
Se nos escritos da juventude os outros elementos estão
subordinados à dimensão cultural, como teremos oportunidade de discutir mais
adiante, nas obras de maturidade a dimensão mesológica assume o lugar de maior
preeminência como o nome da nova ciência já sugere. Os motivos para esse
deslocamento são políticos, ou melhor, geopolíticos, pela facilidade mesma de
se apontar a necessidade de defender-se de imperialismos de potências
não-tropicais com relação a espaços, recursos, população e culturas tropicais
(Freyre, 1969, p. XIX).
A transformação da ciência em geopolítica tem pelo menos
duas limitações decisivas. A primeira refere-se ao fato de supor uma comunidade
indistinta, mesologicamente unificada, em relação ao que lhe é externo. A segunda
limitação, irmã e complementar em relação à anterior, é a proposição implícita
de comunidade indistinta para dentro, onde a dimensão conflitiva e o componente
do poder é secundarizado.
A separação entre trabalhos da juventude e da maturidade não
é feita no sentido de demonstrar qualquer corte epistemológico no autor. Freyre
é o mesmo pensador holista, que pensa a sociedade como um todo orgânico a
partir de partes que se completam. Nesse tipo de concepção de sociedade, a
hierarquia é o dado central e cada pessoa, grupo ou classe, tem o seu lugar.
Igualdade política e econômica jamais foi o princípio mais importante do
sociólogo Gilberto Freyre. Ao inverso, sua atenção esteve sempre voltada a
perceber formas de integração harmônica de contrários, interdependência e
comunicação recíproca entre diferentes, sejam essas diferençasentre culturas,
grupos, gêneros ou classes.
No entanto, para o esforço hermenêutico e interpretativo,
faz muita diferença se estamos falando de potencialidades inscritas em uma sociedade
do séc. XVI e XVII, como o Brasil de Casa-grande e senzala, ou de supostas
características de uma nação em plena segunda metade do século XX, como no caso
dos textos que tratam da luso-tropicologia. Esse dado temporal fundamental nem
sempre é levado em consideração por comentadores que teimam em perceber o
quadro histórico desenvolvido por Freyre para o Brasil colônia pelas lentes de
categorias e noções surgidas séculos mais tarde. A refração operada por esse
tipo de interpretação é a melhor maneira de deixar-se de perceber algumas
intuições de um pensador de talento e saber empírico excepcional.
Estou convencido de que algumas idéias fundamentais de
Freyre não precisam ser tratadas, necessariamente, dentro do mesmo horizonte
categorial e normativo usado pelo autor. Por conta disso, gostaria de propor
uma análise em separado dos dois livros mais importantes de sua juventude,
Casa-grande e senzala (Freyre, 1957) e Sobrados e mucambos (Freyre,1990). Cada
um desses livros refere-se a períodos históricos distintos e apontam para
questões díspares.
Em Casa-grande e senzala a questão central é efetivamente o
encontro intercultural nos trópicos. Esse texto parece-me concentrar os temas
que associamos comumente com o debate ligado a Gilberto Freyre, como a miscigenação
e a comparação, às vezes explícita, o mais das vezes implícita mas sempre
presente, com o desenvolvimento norte-americano.
Em Sobrados e mucambos, no entanto, a questão central
parece-me um ponto, até onde pude perceber, secundarizado pela crítica pelo
menos com relação ao desenvolvimento de todas as suas conseqüências: a
ambigüidade cultural brasileira a partir do embate entre a tradição patriarcal
e o processo de ocidentalização a partir da influência da Europa burguesa, e
não mais portuguesa, que toma de assalto o país no séc. XIX. Esse processo tem
sido percebido, geralmente, como mudança de hábitos de vestir, de leitura, de
consumo em geral. O brasileiro se transveste de civilizado, conferindo sentido
àquela frase ainda hoje utilizada por todo brasileiro, civilizando-se para
inglês ver1.
Existe, na realidade, toda uma sociologia do para inglês
ver, que se nutre na idéia de que o processo de absorção da modernidade
européia no Brasil é um verniz, uma aparência, ou no melhor dos casos uma primeira
epiderme. Acredito que uma leitura alternativa de Sobrados e mucambos pode nos
trazer uma outra concepção desse processo.
Casa-grande e senzala e a peculiaridade do patriarcalismo
tropical
Seria ingenuidade começar a tratar de um dos livros mais
discutidos da historiografia brasileira sem, antes de tudo, comentar os
comentadores e partir do patamar da discussão mais sofisticada. No caso de
Gilberto Freyre, o trabalho de Ricardo Benzaquen de Araújo sobre sua obra na
década de trinta (cf. Araújo, 1993) transformou-se rapidamente em referência
obrigatória para os estudiosos do autor. E isto por boas razões. A abordagem de
Araújo é original e cuidadosa, ajudando a situar o debate acerca das
contribuições de Gilberto Freyre para uma moderna sociologia brasileira em
novos termos.
É a partir de uma respeitosa polêmica com a interpretação
proposta por Luiz Costa Lima no seu O aguarrás do tempo (Lima, 1989), que
Araújo constrói seu argumento. A tese de Lima é clara: Freyre não teria, apesar
de ter dito o contrário no prefácio de Casa-grande e senzala, desvinculado raça
e cultura e dado proeminência a esse último. Essa operação o teria diferenciado
das teorias racistas anteriores, como a de Oliveira Vianna, por exemplo. Para
Lima, Freyre não só não se liberta do paradigma anterior, como introduz a
variável cultural como elemento ancilar em relação ao componente racial,
servindo aquela apenas para conferir maior visibilidade a este último (cf.
Lima, 1989, p. 205).
Para Lima, a ambigüidade constitutiva da metodologia
freyriana se transmite também para seu conteúdo. No tema central da
miscigenação por exemplo, pergunta-se o autor, que confraternização seria essa
cuja igualdade se restringiria ao encontro com vistas ao coito? (cf. Lima,
1989, p. 214).Nesse aspecto fundamental da argumentação Freyriana, a base mesma
de sua tese da proximidade e comunicação entre as distintas tradições culturais
que formavam o Brasil colônia, portanto, Lima veria, antes de tudo, um recalque
do conflito e a criação de uma imagem idílica (cf. Lima, 1989, p. 217) da
herança que o colonizador nos legou.
A interpretação de Araújo se dirige precisamente a esses
dois pontos fundamentais. De início, Araújo parece concordar com as críticas de
Lima. Efetivamente, a imprecisão conceitual é vista como um dado constitutivo
da argumentação Freyriana. No entanto, no desenvolvimento do raciocínio, Araújo
desenvolve uma interessante hipótese explicativa para a presença espúria do
componente raça em Gilberto Freyre. Freyre teria assimilado uma noção
neolamarckiana de raça, que exigiria a mediação do meio físico, enquanto
elemento adaptador capaz de incorporar, transmitir e herdar características
culturais. Assim, raça seria antes um produto, um efeito, do que causa da
combinação entre meio e cultura. Raça seria uma transformação cultural
modificada e adaptada ao meio (cf. Araújo, 1993, p. 39).
Assim, apesar de admitir a imprecisão localizada por Lima,
Araújo ressalta antes o papel dominante do elemento cultural, sendo o
componente racial subordinado no processo de determinação causal. Essa
concepção, dado o compromisso biológico que implica, efetivamente se desviaria
do puro legado de Franz Boas (a quem Freyre diz seguir nesse particular), mas
não implicaria, por outro lado, qualquer adesão às formas de hierarquia racial
típicas do racismo científico antes dominante nos nossos meios intelectuais.
Teríamos a ver, aqui, quando muito, com um resto, um último elo entre teoria
social e biológica (cf. Araújo, 1993, p. 40).
Com relação ao segundo argumento levantado por Lima, o da
imagem idílica, Araújo é ainda mais cauteloso. Ele aceita parcialmente a
crítica e a denomina de uma meia-verdade (cf. Araújo, 1993, p. 48). O autor
percebe que, para construir seu argumento, é necessário qualificar a
especificidade da escravidão brasileira. Esta é violenta como qualquer
escravidão, mas ao contrário da escravidão na Grécia antiga, por exemplo, ela
admite proximidade e influência recíproca entre as culturas dominante e dominadas.
Assim teríamos paralelamente à imensa violência e perversão
inerente a toda sociedade escravocrata um componente de proximidade, explicando
o caráter sincrético de nossa cultura por oposição à pureza da cultura grega
antiga que pouco foi tocada pelas culturas dominadas. Esse componente de
proximidade entre senhor e escravo vê o autor como influência cristã, o qual se
contraporia polarmente com o elemento despótico oriental herdado dos mouros,
como dois aspectos da bicontinentalidade portuguesa.
A consideração da escravidão grega antiga ao invés da
americana sulista se deve ao fato de Araújo não ter encontrado nenhuma alusão a
disparidades entre as duas formas de escravidão em Casa-grande e senzala (cf.
Araújo, 1993, p. 98). Esse ponto é fundamental, e está vinculado também à forma
peculiar, e a meu ver invertida, de como Araújo percebe a influência moura.
Voltaremos a discutir esses aspectos com mais vagar adiante.
Para Araújo, a ambigüidade entre os elementos
oriental-despótico e cristão-aproximativo não é solucionável, ela seria
constitutiva do argumento freyriano. Seria precisamente um exemplo conspícuo
dessas contradições em equilíbrio de que fala Freyre. Que essas contradições
jamais cheguem ao ponto de rompimento ou colisão é explicado pela idéia de
trópico para o autor. Como o neolamarckianismo de Freyre já predisporia, seria
a idéia de trópico uma espécie de mediador entre geografia e cultura, que
traria a idéia de excesso, de uma hybris grega, como elemento dominante de todo
o sistema casa-grande e senzala, permitindo, assim, a convivência de excessos
de despotismo com excessos de proximidade.
A interpretação metodológica de Gilberto Freyre levada a
cabo por Araújo a partir da noção de neolamarckianismo é, sem dúvida, um
divisor de águas no tema. Ela ajuda a esclarecer, inclusive, aspectos fora do
âmbito do estudo de Araújo, como a reificação operada na obra de maturidade do
autor sob a forma de uma geopolítica, como procurei explicitar no começo desse
ensaio. Poder-seia dizer que, no lugar do maior peso da variável cultural que
Araújo corretamente detecta nas obras de juventude, temos a ver,
crescentemente, com uma reificação mesológica e espacial ganhando foros de
categoria explicativa.
Se a noção de neolamarckismo é fundamental para uma adequada
compreensão da obra de Gilberto Freyre, o mesmo não se pode dizer da
interpretação conteudística da obra como a formula Araújo. O argumento do autor
nesse ponto particular, ao enfatizar o elemento da contradição, que sem dúvida
se refere a um ponto real e importante da reflexão Freyriana, termina por se
congelar na proposição de uma hybris, que por ser mero excesso, seja criativo
ou destrutivo como afirma o autor, pode ser tudo e nada ao mesmo tempo, como a
própria anarquia vista por Araújo como a forma social da hybris (cf. Araújo,
1993, p. 90). A hybris é fetichizada e proposta como solução quando na
realidade ela é um sintoma de um problema não resolvido. Ela acaba por se
tornar uma pseudo-explicação.
Afinal um conceito serve para reduzir a complexidade da
realidade e não para reproduzi-la na esfera conceitual. E aqui não cabe dizer
que a realidade descrita por Freyre é mais complexa que as outras realidades.
Toda realidade é complexa na medida em que é perpassada por incontáveis cadeias
significativas vertical e horizontalmente ilimitadas. Esse é um ponto conspícuo
da construção conceitual de inspiração neokantiana em Max Weber, por exemplo. O
tipo-ideal é, nesse sentido, uma hierarquia seletiva de aspectos de uma dada
realidade. Um bom tipo-ideal é aquele que logra selecionar os aspectos mais
importantes da realidade a ser descrita. Na impossibilidade da reprodução da
realidade em toda a sua complexidade, como quer o imanetismo hegeliano, o qual
para Weber produz tipos-ideais sem o saber, a redução da complexidade,
precisamente do excesso a partir da construção de conceitos unívocos, é o
apanágio do bom trabalho conceitual.
Precisamente pela ausência de univocidade da noção de hybris
ela repete e mantém aquilo que o comentador critica em Freyre: a imprecisão e a
ambigüidade. A hybris transforma-se numa enteléquia tão totalizadora que todos
os fatos passam a referir-se a ela seja por afinidade, seja por oposição. Desse
modo, a hybris é vista como a categoria explicativa central nãosomente de
Casa-grande e senzala mas de toda a obra Freyriana do período, inclusive de
Sobrados e mucambos. Nesse sentido, apesar de Araújo perceber com perspicácia a
redução da proximidade social a partir do processo civilizador europeizante,
ele a vincula a uma transformação da hybris anterior, enfatizando antes a
continuidade sob outras formas do que a descontinuidade representada pela
entrada de elementos radicalmente novos em Sobrados e mucambos.
Esse ponto é essencial como iremos ver mais adiante. A
ênfase na continuidade entre esses dois livros termina por não permitir a
localização de uma outra novidade radical na sociologia Freyriana que não tem a
ver com o tema da mestiçagem e, portanto, com a temática que o conceito de
hybris pretende aludir.
A semente da formação social brasileira
Como Freyre afirma nas primeiras páginas de Casa-grande e
senzala, em 1532, data da organização econômica e civil do Brasil, os
portugueses, que já possuíam cem anos de experiência colonizadora em regiões
tropicais, assumiram o desafio de mudar a empreitada colonizadora comercial e
extrativa no sentido mais permanente e estável da atividade agrícola. As bases
dessa empreitada seriam: no aspecto econômico, a agricultura da monocultura
baseada no trabalho escravo, e no aspecto social, a família patriarcal fundada
na união do português e da mulher índia. Na política e na cultura essa
sociedade estaria fundamentada no particularismo da família patriarcal para
Gilberto Freyre. O chefe da família e senhor de terras e escravos era
autoridade absoluta nos seus domínios, obrigando até El Rei a compromissos,
dispondo de altar dentro de casa e exército particular nos seus territórios
(cf. Freyre, 1957, p. 17-18).
O patriarcalismo de que nos fala Freyre tem esse sentido de
apontar para a extraordinária influência da família como alfa e ômega da
organização social do Brasil colonial. Dado o caráter mais ritual e litúrgico
do catolicismo português, acrescido no Brasil do elemento de dependência
política e econômica em relação ao senhor de terras e escravos, o
patriarcalismo familiar pode desenvolver-se sem limites ou resistências
materiais ou simbólicas.
A família patriarcal como que reunia em si toda a sociedade.
Não só o elemento dominante, formado pelo senhor e sua família nuclear, mas
também os elementos intermediários constituídos pelo enorme número de bastardos
e dependentes, além da base de escravos domésticos e, na última escala da
hierarquia, os escravos da lavoura.
É precisamente nesse ambiente saturado de paixões violentas
que surge o tema da ambigüidade e da imprecisão. A questão é real e
significativa referindo-se à forma peculiar em que uma sociedade singular
vinculava umbilicalmente despotismo e proximidade, enorme distância social e
íntima comunicação. Acompanhemos, antes de tudo, a forma como Gilberto Freyre
monta o seu quebra-cabeças multicultural. Esqueçamos por um instante o índio,
cuja influência foi importante mas datada, tendo sido decisivo no período
imediatamente inicial de colonização e desbravamento dos sertões (cf. Freyre,
1957, p. 160-161), e nos concentremos nos dois elementos principais e mais
permanentes do patriarcalismo brasileiro: o português e o negro.
Toda a análise de Casa-grande e senzala é dependente e
decorrente da opinião singular de Freyre acerca do português. É o português o
elemento principal, sob vários aspectos, do processo sincrético de colonização
brasileiro. Antes de tudo, ele é o elemento dominante nos aspectos da cultura
material e simbólica. É ele o motor e idealizador de todo o processo e é dele a
supremacia militar. Se esse elemento a tal ponto dominante não carregasse em si
próprio os germes da cultura que aqui iria se desenvolver, toda a argumentação
de Freyre perderia em plausibilidade.
Mas o português é precisamente a figura do contemporizador
por excelência e é, exatamente nesse traço da predisposição ao compromisso, que
ele se diferencia do colonizador espanhol e, especialmente, do anglo-saxão nas
Américas. É o português o portador da característica mais importante da vida
colonial brasileira: o elemento da plasticidade, do homem sem ideais absolutos
nem preconceitos inflexíveis (cf. Freyre, 1957, p. 191). É essa plasticidade
que irá propiciar a extraordinária influência da cultura negra nos costumes,
língua, religião e, especialmente, numa forma de sociabilidade entre desiguais
que mistura cordialidade, sedução, afeto, inveja, ódio reprimido e praticamente
todas as nuances da emoção humana.
É exatamente no ponto de encontro do português e do negro
que Freyre cria o drama social do Brasil colônia. O ponto problemático é a
afirmação simultânea de desigualdade despótica, que a relação escravo/senhor
propicia, com intimidade e até, em alguns casos, afetividade e comunicação
entre as raças e culturas. Nesse ponto, urge a discussão do que afinal
constituiria a especificidade da escravidão brasileira. De onde ela vem, como e
porque ela se distinguiria de outras sociedades escravocratas.
Acredito que a comparação privilegiada por Gilberto Freyre
nesse aspecto seja por referência ao sul escravocrata norte-americano. Embora
Benzaquen de Araújo aponte corretamente no seu estudo que todas as citações no
texto de Casa-grande e senzala tendem a apontar a mais absoluta similaridade,
nunca apontando para nenhuma diferenciação (Araújo, 1993, p. 98) entre os dois
sistemas, acredito que ainda se possa fazer algumas qualificações interessantes
acerca desse tema. Sem dúvida, esse ponto é insistentemente repetido em
Casa-grande e senzala: fundamental é o sistema econômico de produção
escravocrata e monocultor e a organização patriarcal da família (cf. Freyre,
1957, p. 360, 410 e 422). Esses são pontos que aproximam todas as formas de
sociedades escravocratas nas Américas, seja nos EUA, Brasil ou Cuba. No
entanto, se os pontos essenciais são os mesmos, isso não significa que as
diferenças acessórias não sejam importantes ou até decisivas no estudo
comparado de sociedades de um mesmo tipo.
Acredito, portanto, que devamos examinar essa essência
semelhante das grandes sociedades escravocratas das Américas cum grano salis.
Afinal, isso equivaleria a dizer, em termos de hoje, que as sociedades
industriais avançadas dos EUA e da Alemanha Federal são essencialmente seme
lhantes, por exemplo, no modo de produção econômico e no tipo de família (para
usar precisamente os mesmos termos de Gilberto Freyre quando aproxima as
sociedades escravocratas brasileira e norte-americana). Pouca gente sensata
divergiria dessa afirmativa. Ao mesmo tempo, creio também que pouca gente
deixaria de admitir que existem diferenças acessórias entre as sociedades
americana e alemã as quais correspondem a distinções sociologicamente
significativas em relação a traços estruturais dessas duas sociedades de mesmo
tipo. Existem aspectos de influência histórica que fazem com que essas duas
sociedades, essencialmente semelhantes, tenham diferenças políticas e culturais
em nada desprezíveis para o analista.
Acredito que eram diferenças desse tipo que estavam
subjacente ao argumento Freyriano. Em uma conferência realizada na Universidade
de Stanford, Califórnia, em 1931 (dois anos antes da publicação de Casa-grande
e senzala), Freyre, ao falar da especificidade da escravidão brasileira em
relação à escravidão noutras áreas da América dominadas, desde o século XVII,
por outros povos europeus; indaga-se:
Por que essa diferença? A meu ver por ter sido o brasileiro
um regime de escravidão (...) antes árabe que europeu em seu modo de ser
escravocrata. E ninguém ignora que há imensa distância entre as duas
concepções- a européia, pós-industrial, e a oriental, pré-industrial- de
considerar-se o escravo. Numa o escravo é simples máquina de trabalho. Na
outra, é pessoa quase da família.... (Veja, 15/09/1999, p. 71).
Resguardados possíveis e prováveis exageros nessa
contraposição, os termos da diferença estão postos com a maior clareza
possível. Vale a pena demorar-se neste ponto já que ele é o fio condutor de
toda argumentação Freyriana da especificidade da escravidão e,
conseqüentemente, da formação social colonial brasileira. Um esclarecimento
desse ponto talvez possa ajudar a dirimir, pelo menos em parte, algumas
imprecisões e ambigüidades do argumento de Freyre. Benzaquen de Araújo, ao
seguir a pista da indistinção entre a escravidão brasileira e norte-americana,
termina, inclusive, por inverter o lugar da herança moura no raciocínio
Freyriano. Ele a percebe como um dado do despotismo oriental (cf. Araújo, 1993,
p. 47-57) quando na realidade, para Freyre, ele é a chave explicativa precisamente
do elemento inverso, da confraternização, do componente familiar, distintivo da
escravidão brasileira nas Américas. Em Novo mundo nos trópicos esse ponto é
referido com toda a clareza:
Em toda parte, fiquei impressionado pelo fato de que o
parentesco sociológico entre os sistemas português e maometano de escravidão
parece responsável por certas características do sistema brasileiro.
Características que não são encontradas em nenhumaoutra região da América onde
existiu a escravidão. O fato de que a escravidão, no Brasil, foi,evidentemente,
menos cruel do que na América in glesa, e mesmo do que nas Américas francesa e
espanhola, já me parece documentado de forma idônea (Freyre, 1969, p. 179).
Essa característica nova, maometana, seria precisamente,
portanto, o fator responsável pelo caráter mais benigno (voltaremos a esse
ponto adiante) da escravidão brasileira nas Américas e especialmente em relação
à do Sul dos EUA. Que fator teria sido esse?
E por que foi assim? Não pelo fato de os portugueses serem um
povo mais cristão do que os ingleses, os holandeses, os franceses ou os
espanhóis, a expressão mais cristãos significando aqui, eticamente superiores
na moral e no comportamento. A verdade seria outra: a forma menos cruel de
escravidão desenvolvida pelos portugueses no Brasil parece ter sido o resultado
de seu contato com os escravocratas maometanos, conhecidos pela maneira
familial como tratavam seus escravos, pelo motivo muito mais concretamente
sociológico do que abstratamente étnico de sua concepção doméstica da
escravidão ter sido diversa da industrial. Pré-industrial e até antiindustrial.
Sabemos que os portugueses, apesar de intensamente cristãos
mais do isso até, campeões da causa do cristianismo contra a causa do Islã
imitaram os árabes, os mouros, os maometanos em certas técnicas e em certos
costumes, assimilando deles inúmeros valores culturais. A concepção maometana
da escravidão, como sistema doméstico ligado à organização da família,
inclusive às atividades domésticas, sem ser decisivamente dominada por um
propósito econômico-industrial, foi um dos valores mouros ou maometanos que os
portugueses aplicaram à colonização predominantemente, mas não exclusivamente
cristã, do Brasil (Freyre, 1969, p. 180).
Portanto não foi o elemento cristão, como supôs Araújo
(1993, p. 55), mas o mouro que explicaria para Gilberto Freyre o elemento de
proximidade, a especificidade da escravidão brasileira como expressão social e
cultural singular. Esse ponto é fundamental porque, apenas a partir dele,
podemos reconstruir o que Freyre sempre procurou: o elemento distintivo capaz
de explicar, precisamente, a diferença específica da sociedade escravocrata
brasileira em meio às experiências essencialmente similares das outras sociedades
escravocratas do continente.
Resta ainda perguntar: o que significa exatamente a
influência desse elemento familiar? O esclarecimento desse aspecto é
absolutamente central, posto que ele pode ajudar a compreender não só a
instituição da escravi dão brasileira enquanto tal para Gilberto Freyre, mas a
peculiaridade da formação social brasileira como um todo. Sendo uma instituição
total no Brasil, a forma peculiar da escravidão traria consigo a semente da
forma social que se desenvolveria mais tarde. Qual seria essa semente? Ao se
referir auma conversa sobre o assunto com seu mestre Boas, Freyre nos dá pista
interessante para a questão:
Quando, em 1938, falei ao meu velho professor da
Universidade Columbia, o grande Franz Boas, sobre as idéias que tinha a esse
respeito, ele me disse que as mesmas poderiam servir de base a nova compreensão
e mesmo interpretação da situação brasileira; e que eu devia continuar minhas
pesquisas relativas à conexão existente entre a cultura portuguesa e a moura ou
maometana particularmente entre seus sistemas de escravidão. Argumentou ainda
que os maometanos, árabes e mouros, durante muitos séculos haviam sido
superiores aos europeus e cristãos em seus métodos de assimilação de culturas
africanas à sua civilização(Freyre, 1969, p. 180)2.
O contexto da reportagem dessa conversa com o antigo mestre
remete à alegria de Freyre de ver suas intuições corroboradas por figuras para
ele respeitáveis e acima de qualquer suspeita. A parte da citação em destaque
mostra uma concordância de Boas no aspecto que sempre foi, para Freyre, o
aspecto mais conspícuo da formação brasileira: o sincretismo cultural, uma
combinação entre Europa e África que logrou produzir uma sociedade singular,
não redutível a nenhum dos termos que haviam participado originalmente da sua
formação. Importante para nossos propósitos, no entanto, é a circunstância de
que é precisamente a herança cultural moura na forma da escravidão, que parece
ter sido o elemento decisivo da singularidade da sociedade escravocrata colonial
e, portanto, da semente futura da sociedade brasileira.
Essa influência cultural, não obstante, parece não ter agido
sozinha. Um outro fator, sociológico estrutural, teria agido combinadamente,
qual seja, a necessidade de povoamento de tão grandes terras por um país
pequeno e relativamente pouco populoso:
Daí a forma de escravidão que os portugueses adotaram no
Oriente e no Brasil ter se desenvolvido mais à maneira árabe que à maneira
européia; e haver incluído, a seu modo, a própria poligamia, a fim de
aumentar-se, por esse meio maometano, a população... (Freyre, 1969, p. 180).
O tema da família aumentada é aqui a chave da especificidade
que Freyre pretende construir. Para Freyre, essa instituição não estava ligada
primeiramente à necessidade funcional e instrumental de aumentar o número de
escravos. É que a família polígama maometana tinha uma característica muito
peculiar:
De acordo com os maometanos, bastava ao filho da ligação de
árabe com mulher escrava adotar a fé, os rituais e os costumes do seu pai, para
se tornar igual ao mesmo pai, socialmente falando (Freyre, 1969, p. 181).
E a seguir sobre a versão portuguesa da aplicação desse
princípio cultural:
Os portugueses... assim que se estabeleceram no Brasil
começaram a anexar ao seu sistema de organização agrária de economia e de
família uma dissimulada imitação de poligamia, permitida pela adoção legal, por
pai cristão, quando este incluía, em seu testamento, os filhos naturais, ou
ilegítimos, resultantes de mães índias e também de escravas negras. Filhos que,
nesses testamentos, eram socialmente iguais, ou quase iguais, aos filhos
legítimos. Aliás, não raras vezes, os filhos naturais, de cor, foram mesmo
instruídos na Casa Grande pelos frades ou pelos mesmos capelães que educavam a
prole legítima, explicando-se assim a ascensão social de alguns desses mestiços
(Freyre, 1969, p. 181).
Acredito ser difícil minimizar a importância dessa
influência cultural no esquema interpretativo Freyriano. Acredito também que o
próprio núcleo da singularidade da formação social brasileira para Gilberto
Freyre advém desse fato fundamental de que o filho da escrava africana com o
senhor europeu poderia, ou seja, existia a possibilidade real, quer ela fosse
atualizada ou não, ser aceito como europeizado, no caso de aceitação da fé, dos
rituais e dos costumes do pai.
Talvez esse fato não sirva para esclarecer a decantada
democracia racial, na medida em que o europeu permanecia como o termo
absolutamente positivo da relação. Mas talvez ajude a esclarecer a singularidade
do tipo de sociedade, de cultura política e de comunicação cultural que aqui se
processou. O tema da ascensão social do negro, ou melhor, sua europeização não
é um tema de Casa-grande e senzala (cf. Freyre, 1957, p. 396). Vai ser, no
entanto, um dos fios condutores da argumentação da verdadeira obra-prima de
Gilberto Freyre, Sobrados e mucambos, como veremos mais adiante. Mas em
Casa-grande e senzala já podemos antever como se gerou a semente da sociedade
brasileira moderna.
A família poligâmica e o sado-masoquismo social: como
vincular distância e proximidade?
Gostaria de tentar uma interpretação alternativa de nossa
semente societária, do nosso específico patriarcalismo em Casa-grande e senzala
a partir da noção de sado-masoquismo. Qualquer leitor com suficiente paciência
poderia contar às dezenas as referências de Freyre a relações sado-masoquistas,
seja em Casa-grande e senzala, seja em Sobrados e mucambos, seja ainda em
livros como Nordeste. No entanto, esse esforço pode ser também seguido segundo
um princípio antes sistemático do que tópico, tentando-se perceber, aci ma de
tudo, o alcance analítico dessa noção para a empreitada hermenêutica que Freyre
se propõe. Estou convencido de que a análise desse conceito pode ser de alguma
ajuda para a compreensão da ambigüidade ou imprecisão talvez mais importante no
conceito de patriarcalismo de Gilberto Freyre: a consideração simultânea de
distância e segregação com proximidade e intimidade.
O final do primeiro capítulo de Casa-grande e senzala
fornece uma interessante chave explicativa, social-psicológica, do
patriarcalismo. Este capítulo é um esforço de síntese, que abrange o período de
formação e consolidação do patriarcalismo familiar brasileiro que constitui o
período histórico analisado no livro. De certa forma, Gilberto retira todas as
conseqüências do fato de que a família é a unidade básica, dada a distância do
estado português, e de suas instituições, da formação brasileira, e interpreta
o drama social da época sob a égide de um conceito psico-analítico: o de
sado-masoquismo3.
Na construção desse conceito, Freyre se concentra em
condicionamentos estritamente macro-sociológicos, semelhantes àqueles que
guiariam a reflexão de Norbert Elias (apenas seis anos mais tarde) acerca do
caso europeu na passagem da baixa à alta idade média. No contexto da teoria
sociológica desenvolvida por Norbert Elias a partir do seu estudo clássico
sobre o processo civilizador do ocidente (cf. Elias, 1976), interessa a esse
autor demonstrar a interdependência entre a forma peculiar de organização
social e a forma correspondentemente específica de economia emocional e de
relações intersubjetivas que se estabelecem em dada sociedade.
Apenas na passagem da baixa à alta idade média, ou melhor,
na passagem da sociedade de cavaleiros guerreiros para a sociedade
incipientemente cortesã, temos a ver com uma primeira forma de regulação
externa significativa4 da conduta, ainda que estejamos muito longe do tipo de
regulação interna exigida por uma sociedade industrial democrática moderna. A
forma social anterior, no entanto, a sociedade guerreira medieval, como
descrita por Elias, é em muitos aspectos semelhante à brasileira colonial como
vista por Gilberto Freyre.
Antes de tudo, pelo caráter autárquico do domínio senhorial
condicionado pela ausência de instituições acima do senhor territorial
imediato. Uma tal organização societária, especialmente quando o domínio da
classe dominante é exercido pela via direta da violência armada (como era o
caso nos dois tipos de sociedade), não propicia a constituição de freios
sociais ou individuais aos desejos primários de sexo, agressividade,
concupiscência ou avidez. As emoções são vividas em sua reações extremas, são
expressas diretamente, e a convivência de emoções contrárias em curto intervalo
de tempo é um fato natural.
Na dimensão social, as rivalidades entre vizinhos tomam por
completo também todos os seres que se identificam em linha vertical com os
respectivos senhores. Elias relata, nesse sentido, a espessa rede de intrigas,
invejas, ódios e afetos contraditórios que é congênito a esse tipo de
organização social (cf. Elias, 1976, p. 278). O excesso de que nos fala Araújo
é um atributo desse tipo de sociedade portanto e não só da brasileira colonial.
No caso da sociedade colonial brasileira, o isolamento
social era ainda maior pela ausência das relações de vassalagem, as quais, ao
menos em tempo de guerra, exigiam prestação de serviços e, portanto, a
manutenção de um mínimo de disciplina necessário à empresa militar. Estamos
lidando, no caso brasileiro, na verdade, com um conceito limite de sociedade,
onde a ausência de instituições intermediárias faz com que o elemento
familístico seja seu componente principal. Daí que o drama específico dessa
forma societária possa ser descrito a partir de categorias social-psicológicas
cuja gênese aponta para as relações sociais ditas primárias.
É precisamente como uma sociedade constitutiva e
estruturalmente sado-masoquista, no sentido de uma patologia social específica,
onde a dor alheia, o não reconhecimento da alteridade e a perversão do prazer
transforma-se em objetivo máximo das relações interpessoais, que Gilberto
Freyre interpreta a semente essencial da formação brasileira. Freyre percebe,
claramente, que a direção dos impulsos agressivos e sexuais primários depende
em grande parte de oportunidade ou chance, isto é, de influências externas
sociais. Mais do que predisposição ou de perversão inata (Freyre, 1957, p. 59).
A verdade, porém, é que nós é que fomos os sadistas; o
elemento ativo na corrupção da vida de família; e muleques e mulatas o elemento
passivo. Na realidade, nem o branco nem o negro agiram por si, muito menos como
raça, ou sob a ação preponderante do clima, nas relações de sexo e de classe
que se desenvolveram entre senhores e escravos no Brasil. Exprimiu-se nessas
relações o espírito do sistema econômico que nos dividiu, como um Deus todo
poderoso, em senhores e escravos. Dele se deriva a exagerada tendência para o
sadismo característica do brasileiro, nascido e criado em casa grande,
principalmente em engenho; e a que insistentemente temos aludido neste ensaio.
Imagine-se um país com os meninos armados de faca de ponta!
Pois foi assim o Brasil do tempo da escravidão (Freyre, 1957, p. 361).
Ou ainda, ao discorrer sobre a permanência dessa semente de
sociabilidade nacional, mesmo depois de abolida a escravatura:
Não há brasileiro de classe mais elevada, mesmo depois de
nascido e criado depois de oficialmente abolida a escravidão, que não se sinta
aparentado do menino Braz Cubas na malvadez e no gosto de judiar com negros.
Aquele mórbido deleite em ser mau com os inferiores e com os animais é bem
nosso: é de todo o menino brasileiro atingido pela influência do sistemaescravocrata
(Freyre, 1957, p. 354).
E ainda uma última citação, para não abusar da paciência do
leitor, esta de Machado de Assis, usado aqui por Freyre de modo a esclarecer de
que maneira os valores do sado-masoquismo social se transmitia (se transmite?)
de pai para filho pelos mecanismos sutis da educação.
... um dia quebrei a cabeça de uma escrava, porque me negara
uma colher de doce de coco que estava fazendo, e, não contente com o malefício,
deitei um punhado de cinza ao tacho, e, não satisfeito da travessura, fui dizer
a minha mãe que a escrava é que estragara o doce por pirraça; e eu tinha apenas
seis anos. Prudêncio, um muleque de casa, era meu cavalo de todos os dias;
punha as mãos no chão, recebia um cordel nos queixos, à guisa de freio, eu
trepava-lhe ao dorso, com uma varinha na mão, fustigava-o, davalhe mil voltas a
um e outro lado, e ele obedecia, algumas vezes gemendo mas obedecia sem dizer
palavra, ou, quando muito, um ai, nhonhô! ao que eu retorquia cala a boca,
besta!- esconder os chapéus das visitas, deitar rabos de papel a pessoas
graves, puxar pelo rabicho das cabeleiras, dar beliscão nos braços das
matronas, e outras muitas façanhas deste jaez, eram mostras de um gênio
indócil, mas devo crer que eram também expressões de um espírito robusto,
porque meu pai tinha-me em grande admiração; e se às vezes me repreendia, à
vista de gente, fazia-o por simples formalidade: em particular davame beijos
(Freyre, 1957, p. 354).
A explicação sociológica para a origem desse pecado original
da formação social brasileira, para Gilberto Freyre, exige a consideração da
necessidade objetiva de um pequeno país como Portugal solucionar o problema de
como colonizar terras gigantescas: pela delegação da tarefa a particulares,
antes estimulando do que coibindo o privatismo e a ânsia de posse. Para
Gilberto, é de fundamental importância para a compreensão da singularidade
cultural brasileira a influência continuada e marcante dessa semente original.
De forma distinta à dos teóricos da primeira fase da Escola
de Frankfurt5, os quais, também na mesma década de trinta, procuravam, com a
ajuda do mesmo conceito, explicar a ascensão do nazismo partindo de um quadro
categorial que pressupunha uma rígida estrutura hierárquica pré-existente, onde
a obediência acrítica em relação aos estratos superiores possuía uma conexão
estrutural com o despotismo em relação aos grupos mais passíveis de
estigmatização, Gilberto Freyre, ao contrário, enfatiza o elemento
personalista.
É que patriarcalismo para ele tem a ver com o fato de que
não existem limites à autoridade pessoal do senhor de terras e escravos. Não
existe justiça superior a ele, como em Portugal era o caso da justiça da Igreja
que decidia em última instância querelas seculares, não existia também poder
policial independente que lhe pudesse exigir cumprimentos de contrato, como no
caso das dívidas impagáveis de que fala Freyre, não existia ainda, last but not
least, poder moral independente posto que a capela era uma mera extensão da
casa-grande.
Sem dúvida a sociedade cultural e racialmente híbrida de que
nos fala Gilberto não significa de modo algum igualdade entre as culturas e
raças. Houve domínio e subordinação sistemática, melhor, ou pior no caso, houve
perversão do domínio no conceito limite do sadismo. Nada mais longe de um
conceito idílico ou róseo de sociedade. Foi sádica a relação do homem português
com as mulheres índias e negras. Era sádica a relação do senhor com suas
próprias mulheres brancas, as bonecas para reprodução e sexo unilateral de que
nos fala Gilberto (Freyre, 1957, p. 60, 326 e 332). Era sádica, finalmente, a
relação do senhor com os próprios filhos, os seres que mais sofriam e apanhavam
depois dos escravos (cf. Freyre, 1990, p. 68 e 71).
O senhor de terras e escravos era um hiperindivíduo, não o
superhomem futurista nietzscheano que obedece aos próprios valores que cria,
mas o super-homem do passado, o bárbaro sem qualquer noção internalizada de
limites em relação aos seus impulsos primários.
Se as condições socioeconômicas específicas ajudam a
compreender o caráter despótico e segregador do patriarcalismo, o que dizer do
elemento de proximidade? Em parte, o próprio conceito de sado-masoquismo
implica proximidade e alguma forma de intimidade. Intimidade do corpo e
distância do espírito, sem dúvida, mas de qualquer modo proximidade. E,
efetivamente, grande parte da relação entre senhores brancos e escravos negros,
como vimos acima, se realizava sob essa forma de contato íntimo. No entanto,
Freyre refere-se, simultaneamente, a uma proximidade confraternizadora entre
portadores de culturas dominantes e dominadas.
A extensão da família poligâmica, de origem moura, entra no
raciocínio do autor, creio eu, precisamente para explicar esse outro tipo de comunicação
social entre desiguais. É aqui que se forja a pré-história do mestiço,
especialmente do mulato brasileiro, tema que será um dos fios condutores da
narrativa Freyriana em Sobrados e mucambos. Para Freyre, o tema da ascensão
social do mulato seria tema para ser guardado para ser discutido mais tarde: em
outro livro (cf. Freyre, 1957, p. 396), que tratasse de outro período histórico
de nossa formação, que viria a ser precisamente Sobrados e mucambos. Mas já em
Casa-grande e senzala, encontramos a menção das enormes famílias polígamas
formadas também por filhos naturais e ilegítimos, os quais, não sendo nem
senhores nem escravos, seriam já uma proto-classe média naquela sociedade tão
radicalmente dividida em pólos antagônicos.
Como a participação no manto protetor paterno depende da
discrição e arbítrio deste último, todas as modalidades de protetorado pessoal
são possíveis. O leque de possibilidades vai desde o reconhecimento
privilegiado de filhos ilegítimos ou naturais em desfavor dos filhos legítimos,
como nos exemplifica Freyre em numerosos casos de divisão de herança, até a
total negação da responsabilidade paterna nos casos dos pais que vendiam os
filhos ilegítimos. A proteção patriarcal é, portanto, pessoalíssima, sendo uma
extensão da vontade e das inclinações emocionais do patriarca.
Interessante é o passo logicamente imediatamente posterior,
ou seja, a transformação da dependência pessoal em relação ao patriarca em
familismo. Como sistema, o familismo tende a instaurar alguma forma de bilateralidade,
ainda que incipiente e instável, entre favor e proteção, não só entre o pai e
seus dependentes, mas também entre famílias diferentes entre si, criando um
sistema complexo de alianças e rivalidades. No tipo de sociedade analisado em
Casa-grande e senzala, o patriarcalismo familial se apresenta em forma
praticamente pura, com o vértice da hierarquia social ocupado pela figura do
patriarca. A especificidade do caso brasileiro sendo representada pela
possibilidade (influência maometana para Freyre), sempre incerta mas real, de
identificação do patriarca com seus filhos ilegítimos ou naturais com escravas
ou nativas. A ênfase norte-americana na pureza da origem, por exemplo, retirava
de plano essa possibilidade.
No entanto, o peso do elemento tradicional, ou seja, o
conjunto de regras e costumes que com o decorrer do tempo vão se consolidando
em uma espécie de direito consuetudinário regulando as relações de dependência,
como nos lembra Max Weber no seu estudo acerca do patriarcalismo, e que serve
de limitação ao arbítrio do patriarca, parece ter sido, no caso brasileiro,
reduzido ao mínimo. Daí a ênfase no elemento sado-masoquista em Gilberto
Freyre. O maior isolamento e conseqüente aumento do componente autárquico de
cada sistema casa-grande e senzala pode aqui ter sido o elemento principal. A
ausência de limitações externas de qualquer tipo engendra relações sociais onde
as inclinações emotivas da pessoa do patriarca jogam o papel principal.
Este ponto não me parece um aspecto isolado ou pitoresco da
reflexão gilbertiana. Ao contrário, ele dá conta da dinâmica dos
princípiosestruturantes que dão compreensibilidade ao seu conceito de
patriarcalismo e, portanto, a toda a empresa gilbertiana. Afinal é o sadismo
transformado em mandonismo, como Freyre irá analisar em Sobrados e mucambos,
que sai da esfera privada e invade a esfera pública inaugurando uma dialética
profundamente brasileira de lidar com as noções de público e de privado.
A conseqüência política e social dessas tiranias privadas,
quando se transmitem da esfera da família e da atividade sexual para a esfera
pública das relações políticas e sociais, se torna evidente na dialética de
mandonismo e autoritarismo de um lado, no lado das elites mais precisamente, e
no populismo e messianismo das massas por outro. Dialética essa que iria, mais
tarde, assumir formas múltiplas e mais concretas nas oposições entre doutores e
analfabetos, grupos e classes mais europeizadas e as massas ameríndia e
africana e assim por diante.
Do ponto de vista do patriarca existe, também, uma série de
motivos racionais para aumentar na maior medida possível seu raio de influência
por meio da família poligâmica. Existe toda uma gama de funções de confiança,
no controle do trabalho e caça de escravos fugidos, além de serviços militares
em brigas por limites de terra, etc., que seriam melhor exercidas por membros
da família ampliada do patriarca. E aqui já temos uma primeira versão da
ambígua confraternização entre raças e culturas distintas, que a família
ampliada patriarcal ensejava. Enquanto esse tipo de serviço de controle e
guarda era exercido nos EUA exclusivamente por brancos, no Brasil havia
predomínio de mestiços (cf. Degler, 1971). Nota-se, desde aí, a ambigüidade
entre possibilidade de ascensão social para os mestiços no familismo patriarcal
em troca de identificação com os valores e interesses do opressor.
Além dos motivos econômicos e políticos que favoreciam o
familismo patriarcal rural brasileiro, tínhamos também uma interessante forma
religiosa também familial. O componente mágico, da proximidade entre o sagrado
e o profano, constitutivo de toda espécie de catolicismo, foi levado aqui a seu
extremo. Havia impressionante familiaridade entre os santos e os homens,
cumprindo àqueles, inclusive, funções práticas dentro da ordem doméstica e
familiar. Nesse contexto, mais importante ainda é que o culto aos santos se
confundia também com o culto aos antepassados, conferindo ao familismo como
sistema uma base simbólica própria.
A família era o mundo e, até, em grande medida, portanto, o
alémmundo. Além da base econômica e política material, o catolicismo familial
(cf. Freyre, 1957, p. 34, 153, 222 e 223) lançava os fundamentos de uma base
imaterial e simbólica referida às suas próprias necessidades de interpretar o
mundo a partir de seu ponto de vista tópico e local. Acredito que o
patriarcalismo familial rural e escravocrata para Freyre envolvia a definição
de uma instituição total, no sentido de um conjunto articulado onde as diversas
necessidades ou dimensões da vida social encontravam uma referência
complementar e interdependente.
O componente sado-masoquista era constitutivo na medida que
inclinações pessoais do patriarca (ou de seus representantes), com um mínimo de
limitações externas materiais ou simbólicas, decidiam em última instância sobre
a amplitude do núcleo familiar e como e a quem e em que proporção seria
distribuído seu favor e proteção. O componente de proximidade social entre
desiguais que Freyre enfatiza ao lado do componente violento e segregador é, nesse
sentido, instável, imprevisível e particularista. Qualquer efeito duradouro
desse elemento integrativo exige a consideração de outras variáveis sociais
inexistentes no sistema casa-grande e senzala.
Sobrados e mucambos e a singularidade cultural brasileira
Esse tema nos leva a consideração do argumento Freyriano em
sua obra prima sociológica: Sobrados e mucambos. Toda a questão do familismo se
complexifica enormemente em Sobrados e mucambos, ou seja, na passagem do
patriarcalismo rural para o urbano. A decadência do patriarcado rural
brasileiro está ligado diretamente à ascendência da cultura citadina no Brasil.
Esse processo, que a vinda da família real portuguesa ao Brasil veio
consolidar, já estava prenunciado na descoberta das minas, na presença de
algumas cidades coloniais de expressão, na necessidade de maior vigilância
sobre a riqueza recém-descoberta e no maior controle, a partir de então, sobre
o familismo e mandonismo privado. Exemplo típico e sintomático da mudança do
poder do campo para as cidades é o caso das dívidas dos patriarcas rurais,
antes incobráveis, e a partir de então sendo pagas sob força policial. Tão
importante quanto a mudança do centro economicamente dinâmico foi a transformação
social de largas proporções implicando novos hábitos, novos papéis sociais,
novas profissões, nova hierarquia social.
Fundamental para a constituição desse quadro de renovação é
que as mudanças políticas, consubstanciadas na nova forma do Estado, e as
mudanças econômicas, materializadas na introdução da máquina e na constituição
de um incipiente mercado capitalista, foram acompanhadas também de mudanças
ideológicas e morais importantes. Com a maior urbanização, a hierarquia social
passa a ser marcada pela oposição entre valores europeus burgueses e os valores
anti-europeus do interior, marcando uma antinomia valorativa no país com
repercussões que nos atingem ainda hoje.
O familismo do patriarcalismo rural debate-se, pela
primeira, com valores universalizantes. Esses valores universais e idéias
burguesas entram no Brasil do século XIX do mesmo modo como se haviam se
propagado na Europa do século anterior: na esteira da troca de mercadorias6.
Esse ponto é absolutamente fundamental para uma adequada compreensão de todas
as conseqüências do argumento de Gilberto Freyre nesse livro original e
importante. A crítica geralmente releva o aspecto da mudança comportamental da
influência europeizante (não ibérica e até antiibérica) no sentido de apontar
para as novas modas de vestir, de falar, de comportamento público, etc. É como
se os brasileiros tivessem passado a consumir pão e cerveja como os ingleses,
consumir a alta costura de Paris e civilizarse em termos de maneiras e
comportamento observável.
Esse novo comportamento é visto, quase sempre, como
possuindo alguma dose de afetação e superficialidade conferindo substância para
a expressão, ainda hoje muito corrente no Brasil para designar comportamentos
exteriores, superficiais, para causar impressão, que é o dito popular para
inglês ver. Essa leitura do processo de modernização brasileiro como um
processo inautêntico, tendo algo de epidérmico e pouco profundo, é certamente
uma das nossas sociologias oficiais. Ela está na base da teorização de um
Roberto Schwartz, acerca da sociedade do favor e onde as idéias estão fora de
lugar, argumento defendido no contexto da sua interpretação de Machado de
Assis. As idéias fora de lugar, no caso, são idéias liberais numasociedade
ainda escravocrata7.
Em Sobrados e mucambos Gilberto Freyre percebe a
reeuropeização do Brasil do séc. XIX, como um processo que tinha certamente
elementos meramente imitativos do tipo para inglês ver, elementos esses aliás
típicos em qualquer sociedade em processo de transição. Fundamental, no entanto,
é que existiam também elementos importantes de real assimilação e aprendizado
cultural. Mais importante ainda é a construção, nesse período, de instituições
fundamentais, como um estado e mercado incipientes, base sobre a qual
poder-se-ia desenvolver-se, em bases autônomas, os novos valores universalistas
e individualistas.
O embate valorativo entre os dois sistemas é a marca do
Brasil moderno, cuja genealogia Freyre traça em Sobrados e mucambos com uma
maestria exemplar. Nesse novo contexto urbano o patriarca deixa de ser
referência absoluta. Ele próprio tem que se curvar a um sistema de valores com
regras próprias e aplicável a todos inclusive a antiga elite social. O sistema
social passa a ser regido por um código valorativo crescentemente impessoal e
abstrato. A opressão tende a ser exercida agora cada vez menos por senhores
contra escravos, e cada vez mais por portadores de valores europeus sejam esses
efetivamente assimilados ou simplesmente imitados contra pobres, africanos e
índios.
A época de transição do poder político, econômico e cultural
do campo para a cidade foi também, em vários sentidos, a época do campo na
cidade. De início, o privatismo e o personalismo rural foi transposto tal qual
era exercido no campo para a cidade. A metáfora da Casa e da Rua em Gilberto
assim o atesta. O sobrado, a casa do senhor rural na cidade, é uma espécie de
prolongamento material da personalidade do senhor. Sua relação com a rua, essa
espécie arquetípica e primitiva de espaço público, é de desprezo, a rua é o
lixo da casa, representa o perigo, o escuro, era simplesmente a não-casa, uma
ausência. O sado-masoquismo social muda de habitação. Seu conteúdo, no entanto,
aquilo que o determina como conceito para Gilberto Freyre, ou seja, o seu
visceral não reconhecimento da alteridade, permanece.
A passagem do sistema casa-grande e senzala para o sistema
sobrado e mocambo, fragmenta, estilhaça em mil pedaços uma unidade antes
orgânica, antagonismos em equilíbrio, como prefere Gilberto. Esses fragmentos
espalham-se agora por toda a parte, completando-se mal e acentuando conflitos e
oposições. Da Casa-grande e senzala, depois Sobrados e mucambos, e, talvez,
hoje em dia, bairros burgueses e favelas, as acomodações e complementaridades
ficam cada vez mais raras. De início, a cidade não representou mais do que o
prolongamento da desbragada incúria dos interesses públicos em favor dos
particulares. O abastecimento de víveres, por exemplo, foi um problema
especialmente delicado, sendo permitido, inclusive, o controle abusivo dos
proprietários até sobre as praias e os viveiros de peixes que nelas se
encontravam, sendo estes vendidos depois a preços oligopolísticos (cf. Freyre,
1990, p. 171-177).
Desse modo, a urbanização representou uma piora nas
condições de vida dos negros livres e de muitos mestiços pobres das cidades. O
nível de vida baixou, a comida ficou pior e a casa também. Seu abandono os fez,
então perigosos, criminosos, capoeiras, etc. Os sobrados senhoris, também
nenhuma obra-prima em termos de condições de moradia, por serem escuras e
anti-higiênicas, tornaram-se com o tempo prisões defensivas do perigo da rua,
dos moleques, dos capoeiras, etc.
No entanto, a urbanização também representou uma mudança
lenta mas fundamental na forma do exercício do poder patriarcal: ele deixa de
ser familiar e abstrai-se da figura do patriarca passando a assumir formas
impessoais. Uma dessas formas impessoais é a estatal que passa, por meio da
figura do imperador, a representar uma espécie de pai de todos, especialmente
dos mais ricos e dos enriquecidos na cidade, como os comerciantes e
financistas. O estado, ao mesmo tempo, mina o poder pessoal pelo alto,
penetrando na própria casa do senhor e lhe roubando os filhos e tranformando-os
em seus rivais. É que as novas necessidades estatais por burocratas, juízes,
fiscais, juristas, etc., todas indispensáveis para as novas funções do estado,
podem ser melhor exercidas pelo conhecimento que os jovens adquirem na
escola,especialmente se essa fosse européia, o que lhes conferia ainda mais prestígio.
Com isso, o velho conhecimento baseado na experiência,
típico das gerações mais velhas, foi rapidamente desvalorizado, num processo
que, pelo seu exagero, é típico de épocas de transição como aquela. D. Pedro II
é uma figura emblemática nesse processo. Sendo ele próprio um imperador jovem,
cercou-se de seus iguais, ajudando a criar o que Nabuco chamaria deneocracia
(cf. Freyre, 1990, p. 88).
Também a relação entre os sexos mudou. A urbanização mitiga
o excesso de arbítrio do patriarca ao retirar as pré-condições sob a influência
das quais ele exercia seu poder ilimitado. O médico de família, por exemplo,
insere no lar doméstico uma influência incontrolável pelo patriarca. É ele que
irá substituir o confessor. O teatro, o baile de máscaras, as novas modas de
vestir e os romances se tornam mais importantes que a Igreja. Um novo mundo se
abre para as mulheres, apesar do sexismo ter sido, para Gilberto, o nosso
preconceito mais persistente.
De qualquer modo, as mudanças acima representam
transformações importantes porém limitadas da autoridade patriarcal. Ele é
obrigado a limitar-se na sua própria casa, mas a real mudança estrutural e
democrática ainda estava por vir. Em Sobrados e mucambos, essa mudança recebe,
como vimos, o nome de reeuropeização, ou até, dado o caráter difusamente
oriental da sociedade colonial brasileira, de europeização do Brasil.
Impacto verdadeiramente democratizante parece ter sido o
advento mais ou menos simultâneo do mercado, e da constituição de um aparelho
estatal autônomo, com todas as suas conseqüências sociais e culturais. A
reeuropeização teve um caráter de reconquista, no sentido da revalorização de
elementos ocidentais e individualistas em nossa cultura através da influência
de uma Europa, agora já francamente burguesa, nos exemplos da França, Alemanha,
Itália, e, especialmente, da grande potência imperial e industrial da época e
terra natal do individualismo protestante, a Inglaterra.
Tal processo realizou-se como uma grande revolução de cima
para baixo envolvendo todos os estratos sociais, mudando a posição e o
prestígio relativo de cada um desses grupos e acrescentando novos elementos de
diferenciação. São esses novos valores burgueses e individualistas que irão se
tornar o núcleo da idéia de modernidade enquanto princípio ideologicamente
hegemônico da sociedade brasileira a partir de então. No estilo de vida, e aí Gilberto
chama atenção para a influência decisiva dos interesses comerciais e
industriais do imperialismo inglês, mudou-se hábitos, a arquitetura das casas,
o jeito de vestir, as cores da moda, algumas vezes com o exagero do uso de
tecidos grossos e impróprios ao clima tropical. Bebia-se agora cerveja e
comia-se pão como um inglês, e tudo que era português ou oriental
transformou-se em sinal de mau gosto (cf. Freyre, 1990, p. 336). O caráter
absoluto dessas novas distinções tornou o brasileiro de então presa fácil da
esperteza, especialmente francesa no relato de Gilberto, de vender gato por
lebre.
Para além das mudanças econômicas, houve as culturais e
políticas, com o advento das novas idéias liberais e individualistas, que logo
conquistaram setores da imprensa e as tribunas parlamentares. No entanto,
nenhuma dessas mudanças importantes teve o impacto da entrada em cena no nosso
país do elemento burguês democratizante por excelência: o conhecimento e, com
ele, a valorização do talento individual, que tanto o novo mercado para
artífices especializados, quanto as novas funções estatais exigiam.
No âmbito do mercado, fundamental foi a introdução da
máquina, a qual, como de resto sabia Karl Marx, não é mais do que conhecimento
materializado. Gilberto está perfeitamente consciente da enorme repercussão
social dessa inovação técnica (cf. Freyre, 1990, p. 489-508). É que a máquina
veio desvalorizar a base mesma da sociedade patriarcal diminuindo tanto a
importância relativa do senhor quanto do escravo, agindo como principal
elemento dissolvente da sociedade e cultura patriarcal.
Ao desvalorizar as duas posições sociais polares que marcam
a sociedade escravocrata, ela vinha valorizar, por conta disso, precisamente
aquele elemento médio, que sempre havia composto uma espécie de estrato
intermediário na antiga sociedade, onde, não sendo nem senhor nem exatamente um
escravo, era um deslocado, um sem-lugar portanto.
Apesar do elemento democrático ter sido atualizado e
possibilitado pelos novos valores advindos do processo de reeuropeização, ou
seja, de fora para dentro, sua assimilação só é possível de forma rápida e
eficaz, porque o próprio sistema já havia gestado, desde sempre, um elemento de
proximidade ao lado do despótico e segregador, cujas origens estão também nas formas
de convivência do patriarcalismo, baseado na escravidão de tipo árabe ou mouro,
que é precisamente aquilo que Gilberto chamará um tanto vagamente de seu
elemento democrático.
A gênese social desse elemento remonta, portanto, àquela
intimidade sexual e cultural entre as diversas raças e culturas, especialmente
a portuguesa e a africana, que predominava no sistema casa-grande e senzala. E
aqui encontramos uma primeira forma de lugar social para aquele elemento
gestado na família patriarcal ampliada e poligâmica. Será, precisamente, a
partir dessas modificações sociais estruturais que teremos a construção da
categoria social do mulato, ou da válvula de escape do mulato, como prefere
Carl Degler (1971, p. 205-265).
O enorme número de mestiços e filhos ilegítimos de senhores
e padres, indivíduos de status intermediários, quase sempre assumindo as
funções de escravo doméstico ou agregado da família, de qualquer modo quase
sempre mais ou menos deslocados no mundo de posições polares como são as de
senhor e escravo, encontram, agora, uma possibilidade nova de ascensão e
mobilidade social. A enorme mudança social implicada pela mudança do campo para
a cidade abre, portanto, oportunidades antes imprevistas para esse estrato.
Na nova sociedade nascente são as antigas posições polares
que perdem peso relativo, e esses indivíduos, quase sempre mestiços, sem outra
fonte de riqueza que não sua habilidade e disposição de aprender os novos
ofícios mecânicos, quase sempre como aprendizes de mestres e artesãos europeus,
passaram a formar o elemento mais tipicamente burguês daquela sociedade em
mudança: o elemento médio, sob a forma de uma meia-raça.
Ao invés apenas dos apanágios exteriores de raça, dentro da
complexa ritualística que, como conseqüência da maior proximidade social entre
os diversos estratos sociais que a urbanização enseja, instaura-se no país
nessa época, como a forma da vestimenta, a comida, o modo de transporte, o
jeito de andar, o tipo de sapato, etc., temos, a partir de então, um elemento
diferenciador novo. Esse elemento é revolucionário no melhor sentido burguês do
termo, posto que interno e não externo, sendo antes uma substância e um
conteúdo do que uma aparência, mais ligados portanto a qualidades e talentos
pessoais que a privilégios herdados.
O conhecimento, a perícia, passa a ser o novo elemento que
passa a contar de forma crescente na definição da nova hierarquia social. Nesse
sentido, servindo de base para a introdução de um elemento efetivamente
democratizante, pondo de ponta cabeça e redefinido revolucionariamente a
questão do status inicial para as oportunidades de mobilidade social na nova
sociedade. Uma democratização que tinha como suporte o mulato habilidoso. Do
lado do mercado, essas transformações se operam segundo uma lógica de baixo
para cima, ou seja, pela ascensão social de elementos novos em funções manuais,
as quais, sendo o interdito social absoluto em todas as sociedades
escravocratas, não eram percebidas pelos brancos como dignificantes. Com o
enriquecimento paulatino, no entanto, de mulatos aprendizes e artífices e de
imigrantes, nessa época especialmente portugueses, como caixeiros e
comerciantes as rivalidades e preconceitos tenderam a aumentar
proporcionalmente.
O outro caminho de ascensão social do mulato, do mulato bacharel
para Gilberto, de cultura superior e portanto mais aristocrático do que o
mulato artesão, é o símbolo de uma modernização que se operou não apenas de
fora para dentro e de baixo para cima, mas também de cima para baixo. O mestiço
bacharel constitui uma nobreza associada às funções do estado e de um tipo de
cultura mais retórico e humanista do que a cultura mais técnica e pragmática do
mestiço artesão. O estado, portanto, e não apenas o mercado como semente de uma
incipiente sociedade civil, foi também um locus importante dessa nova
modernidade híbrida, já burguesa, mais ainda patriarcal, se bem que de um
patriarcalismo já sublimado e mais abstrato e impessoal na figura do imperador
pai de todos, e já mais afastado portanto do patriarcalismo familístico todo
dominante na colônia.
O processo de incorporação do mestiço à nova sociedade foi
paralelo ao processo de proletarização e demonização do negro. Tanto o escravo
quanto o pária dos mocambos nas cidades era o elemento em relação ao qual todos
queriam se distinguir. A enorme importância da vestimenta nessa época servia
agora para fins de diferenciação social que antes sequer necessitavam de
externalização. O elemento capaz de ascensão, portanto, era o mulato ou o
mestiço em geral, o semi-integrado, o agregado e todas as figuras
intermediárias da sociedade. A própria ênfase na distinção do traje ou a
violência das humilha ções públicas contra os mestiços que usavam casaca ou
luva já demonstram, como uma conseqüência mesma do acirramento das contradições
a partir da competição com indivíduos brancos antes seguros de sua posição (cf.
Freyre, 1990, p. 399), a possibilidade real de ascensão e a contradição entre
elementos constitutivos do sistema: um segregador e outro democratizante.
Fundamental para a compreensão do argumento de Gilberto, no
entanto, vale a pena repetir, é que o componente externo, burguês, da
revalorização do trabalho manual e da habilidade pessoal, produto do processo
de reeuropeização, é apenas parte do processo de constituição de uma sociedade
mestiça e híbrida. Tão importante quanto a entrada desse novo elemento é o fato
de que a tendência segregacionista do sistema teve desde sempre a competição de
um elemento de proximidade, acomodação e compromisso como um traço constitutivo
complementar, também ele intrínseco ao sistema valorativo do patriarcalismo de
inspiração polígama e árabe. Sendo portanto duas tendências, uma segregadora e
despótica e outra democrática, dentro do mesmo sistema, em complexa relação de
complementaridade e oposição.
As chances de ascensão social do mestiço já estavam assim
prefiguradas pelo costume de dividir as heranças entre filhos ilegítimos, ou
seja, mestiços de alguns senhores, problema que deve ter atingido proporções
razoáveis para estimular escritos e reclamações contrárias à prática por ser
supostamente fragmentadora da riqueza acumulada, como nos conta Gilberto em
Casa-grande e senzala. Também pela proximidade e intimidade afetiva entre o
senhor e suas concubinas, assim como pelos sentimentos filiais entre filhos de
senhores e amas negras, em resumo, por todas as formas de extensão em linha
vertical de vínculos afetivos e privilégios familiares e de classe a agregados,
no sentido amplo do termo, da família patriarcal.
É portanto apenas com a consideração dos efeitos da
escravidão moura expostos em Casa-grande e senzala no contexto de modernização
e europeização do século XIX que podemos compreender o significado social do
elemento de proximidade da sociedade escravocrata brasileira. Freyre percebia
que os lugares sociais do patriarcalismo sempre foram funcionais e não
essencialistas. Isso permitia que a figura masculina do patriarca pudesse ser
exercida por uma mulher, a qual obviamente continua biologicamente mulher, mas
era sociologicamente ou funcionalmente homem/patriarca. Assim, do mesmo modo,
os afilhados ou sobrinhos, como eram chamados os filhos ilegítimos de senhores
de terra e padres, os quais poderiam tornar-se sociologicamente filhos,
herdando a riqueza paterna, ou mesmo o substituindo na atividade produtiva. O
mesmo traço sistêmico fazia o biologicamente mulato transformar-se em
sociologicamente branco, ou seja, ocupar posições sociais que, num sistema
escravocrata, são privilégio de brancos (cf. Freyre, 1990, p. 366).
Esse traço sistêmico permitiu efetivamente considerável
mestiçagem e ascensão social do mestiço no contexto da sociedade reeuropeizada
do século XIX. A partir disso é que Freyre constrói sua oposição entre
democracia racial brasileira se contrapondo à democracia meramente política
americana. Essa contraposição8 nem sempre explícita, mas sempre presente, é
pensada em termos exclusivos, como se cada tradição cultural predispusesse a
cada um desses respectivos caminhos alternativos.
Se a maior parte da historiografia moderna, especialmente de
origem americana, logrou pôr em cheque convincentemente a noção Freyriana,
também defendida no clássico de Frank Tannembaum, Slave and citizen
(Tannembaum, 1992), acerca de uma maior benignidade da escravidão do Brasil
colônia comparativamente à norte-americana, o próprio fato social da mestiçagem
e da real ascensão social de mestiços no Brasil do séc. XIX mostra uma
diferença insofismável entre as duas sociedades. No Brasil, havia a
possibilidade de negociação individual da superação da condição de negro ou
mestiço, havia a possibilidade, inexistente nos EUA da época, do negro ou
mestiço embranquecer.
Esse fato se explica talvez, não como imaginava Freyre, a
partir de uma histórica maior benignidade comparativa da escravidão brasileira.
Existe uma possibilidade muito maior da possibilidade do embranquecimento ter a
ver com a configuração valorativa específica do país que estava sendo
europeizado. Podemos perceber a importância desse aspecto considerando a relação
diversa dos Estados Unidos e do Brasil com a questão da modernidade.
Ao contrário do Brasil, os Estados Unidos são um dos países
que nasceram e retiraram sua razão de ser a partir de idéias que vieram a ser
conhecidas mais tarde como constitutivas para o ideário ocidental. No caso
americano, especialmente as noções de liberdade religiosa, depois expandidas
para as esferas da política e da economia, e a noção, de fundo sectário
protestante, da responsabilidade individual.
O caso brasileiro apresenta um desvio importante dessa
lógica. A modernidade chega ao país de navio como vimos, e põe de ponta cabeça
seja no seu aspecto material, seja no seu aspecto simbólico, toda a sociedade
vigente. Com relação a esses novos valores que chegam, não havia diferença de
fundo entre brancos, mestiços ou negros. Esses valores são estranhos a todos
igualmente e põem, portanto, a questão do status relativo sob novos padrões,
como havia percebido Freyre. A própria elite do patriarcalismo rural teve que
se curvar a mudanças que afetavam sua própria vida cotidiana e doméstica.
Uma real compreensão da dimensão desse processo exige a
crítica do naturalismo (cf. Taylor, 1998) da vida cotidiana e de certa ciência
social. Valores não são instrumentos nas mãos da elite ou dos indivíduos que
estão à disposição dos seus fins instrumentais. Valores são construções sociais
que possibilitam o pano de fundo a partir do qual os indivíduos se compreendem
e podem agir em conjunto segundo um quadro de referências comum.
Quando a modernidade européia chega ao Brasil de navio, na
esteira da troca de mercadorias, seus valores não são uma mera mercadoria de
consumo. Afinal seriam esses valores que iriam presidir a institucionalização
incipiente de formas extremamente eficazes de condução da vida cotidiana: o
estado e o mercado capitalistas9. Estado e mercado pressupõem uma revolução
social, econômica, valorativa e moral de grandes proporções. Os papéis sociais
se modificam radicalmente. O que antes era aceito como definindo os papéis
sociais de mulher, homem, filho e pai se transformam, como Freyre mostra com
maestria. A noção de tempo, a condução da vida cotidiana, a economia afetiva
necessária para o aprendizado dos novos ofícios e profissões é completamente
diferente da que imperava anteriormente. O que é tido como bonito, como bom,
como legítimo de ser perseguido na vida, a noção de sucesso e de boa vida muda
radicalmente. Muda, enfim, a configuração valorativa da sociedade como um todo.
É esse contexto revolucionário, no sentido mais profundo do
termo por se referir a mudanças dos corações e das mentes das pessoas, mudanças
essas amparadas por transformações institucionais que garantiam, através do
mecanismo peculiar de prêmios e punições típicos da eficácia institucional, a
reprodução e permanência desses mesmos valores novos, que Freyre nos expõe com
talento singular em Sobrados e mucambos.
E é também esse novo contexto valorativo que pode nos
explicar a nova posição do mestiço nele. Foi nas necessidades abertas por um
mercado incipiente, em funções manuais e mecânicas rejeitadas pelos brancos,
assim como pelas necessidades de um aparelho estatal em desenvolvimento que
mestiços puderam afirmar seu lugar social. Neste último caso, por se tratar de
colocações de alta competitividade, disputando posições com os brancos, é que
Gilberto fala da cordialidade e do sorriso fácil, típico do mulato em ascensão,
como a compensar o dado negativo da cor. Essa compensação, ao mesmo tempo que
reafirma o racismo mostra que o empecilho não era absoluto e sim relativo,
superável pelo talento individual, ou seja, mostra que havia espaço para formas
de reconhecimento social baseadas no desempenho diferencial e não apenas em
categorias adscritivas de cor.
Afinal fazia parte mesmo da flexibilidade do sistema o
abandono de características segregadoras a partir da dimensão biológica, tão
determinante em outros sistemas com características semelhantes, em favor de
uma sobredeterminação sociológica ou funcional. De certo modo, o que era
construtivo e funcional para a reprodução do sistema como um todo, governado já
agora pela palavra mágica da modernização, era passível de valorização. Assim a
realização diferencial de certos fins e valores considerados de utilidade
social inquestionável era mais importante, por exemplo, do que a cor da pele do
indivíduo em questão.
O esforço de assimilação de valores e da tecnologia
ocidental por brasileiros é precisamente o ponto em que diferenças de raça e
classe sempre foram e são até hoje relativizadas (cf. Costa, no prelo). É o
aspecto no qual o ideário de ordem e progresso encontra seu alfa e ômega. Quem
quer que contribua para esse desiderato maior de modernização é premiado pelo
sistema. Em todos os estratos tradicionais da sociedade patriarcal brasileira
nenhum tinha relação privilegiada com a modernidade. Eram valores estranhos a
todos os quais foram assimilados ou imitados avidamente por um país que antes
da europeização mais lembrava um país asiático que americano ocidental.
Precisamente o contrário ocorreu nos EUA. Como Anthony Marx
escreve a propósito da rápida conciliação entre brancos após a guerra civil
americana que selou a retirada dos negros sequer da possibilidade de competição
com os brancos na dinâmica da economia americana: Já em Gettysburg, Edward
Everett havia se referido à necessidade de reconciliação entre nortistas e
sulistas os quais dividem uma comunidade substancial de origem. Os negros eram
claramente concebidos como não fazendo parte dessa unidade ancestral (Marx,
1997, p. 134).
Essa comunidade ancestral de origem tem uma história rica e
peculiar nos EUA. Ao contrário de outras matrizes do ideário ocidental como a
Inglaterra, a França e a Alemanha, nos Estados Unidos a consciência de que se
estava realizando uma experiência societária original e única foi absolutamente
singular. Já o discurso de John Winthrop, o seu A modell of Christian charity
(cf. Bellah, 1984, p. 13), tendo como público os primeiros pioneiros, já aponta
para um grau de internalização reflexiva do projeto de sociedade que ali nascia
que não deve ter tido comparação na história. É essa tradição que Robert Bellah
chamou de religião cívica americana para se referir à constante reinterpretação
do ato fundador da comunidade política como uma missão a ser cumprida
coletivamente (cf. Bellah, 1991).
Para um sociólogo consciente do papel dos valores na
definição da especificidade de uma sociedade como Bellah, a ambigüidade que se
instaura com o mito americano de povo escolhido ajuda tanto a compreender a
notável força da idéia associativista americana no sentido intra-comunitário,
quanto o exclusivismo, especialmente cultural e étnico, para os réprobos
extracomunitários, dos que eram percebidos como não participando desse projeto
social (cf. Bellah, 1984, p. 36-61).
No Brasil do começo ao fim do século XIX, a proporção de
mulatos cresceu de 10% para 41% da população total. Isso implica rápida
miscigenação e casamentos inter-raciais e indica que a mobilidade social desse
estrato era mais do que mera fantasia. A partir da segunda metade do séc. XIX a
ascensão social de mestiços no Brasil fez, efetivamente, com que tivéssemos
mulatos como figuras de proa na literatura, na política, no exército, e
atuantes como ministros, embaixadores, e até presidentes da república. Seria
certamente uma hipótese interessante estudar que tipo de modificações nesse
processo foi causado pela entrada em número significativo, estima-se entre 3 a
5 milhões de pessoas, de europeus a partir do final do século XIX. A chegada
dos portadores mesmos reais ou fictícios dos valores da modernidade deve ter
certamente contribuído para uma modificação decisiva nesse padrão10.
Para uma sociologia que não se deixe cegar por uma concepção
instrumentalista dos valores esse tema é fundamental. Ele permite ver que
branco ou negro não é uma categoria biológica mas cultural. Essa afirmação
parece trivial mas não é. Segui-la às últimas conseqüências significa perceber
a temática racial desse período por referência ao processo de europeização que
tomava o país. Assim, ser considerado branco era ser considerado útil ao
esforço de modernização do país, daí a possibilidade mesma de se embranquecer,
fechada em outros sistemas com outras características.
Branco era (e continua sendo) antes um indicador da
existência de uma série de atributos morais e culturais do que a cor de uma
pele. Embranquecer significa, numa sociedade que se europeizava, compartilhar
os valores dominantes dessa cultura, ser um suporte dela. Preconceito, nesse
sentido, é a presunção de que alguém de origem africana é primitivo, incivilizado,
incapaz de exercer as atividades que se esperava de um membro de uma sociedade
que se civilizava segundo o padrão europeu e ocidental.
Antônio Sérgio Guimarães percebe bem a relevância desse
aspecto para a questão racial quando afirma:
No Brasil, o branco não se formou pela exclusiva mistura
étnica de povos europeus, como ocorreu nos estados Unidos com o caldeirão
étnico; ao contrário, como branco contamos aqueles mestiços e mulatos claros
que podem exibir os símbolos dominantes da europeidade: formação cristã e
domínio das letras (Guimarães, 1999, p. 47).
Freyre tem, portanto, razão em apontar uma especificidade
brasileira na questão racial pelo menos nesse período. Menos pelos efeitos de
uma maior benignidade da escravidão brasileira, concepção que ele compartilhava
com Tannembaum, do que pelo contexto peculiar do processo de modernização
brasileiro. É precisamente essa certeza que vai fazê-lo pleitear uma opção
peculiar na comparação entre os desenvolvimentos brasileiro e americano. O
Brasil teria uma democracia racial, enquanto os EUA seriam os campeões da
democracia política, como duas faces de desenvolvimento possível de sociedades
escravocratas.
Escapava a Gilberto Freyre, no entanto, a íntima vinculação
entre questão racial e questão democrática num país como o Brasil do séc. XIX
(e ainda hoje) onde os pobres e excluídos eram negros ou mestiços (livres ou
não). Para o holista Freyre, para quem a questão principal é o acolhimento do
diferente, dentro de uma hierarquia que provê a todos com um lugar, a
possibilidade de ascensão individual de pessoas de cor terminaria por resolver
no Brasil a questão racial como um caminho alternativo de resolução da questão
democrática.
Escapava também a Freyre que o princípio da igualdade
política e jurídica não é meramente adscrito a uma esfera específica da
sociedade e que, em certo sentido, qualquer caminho alternativo que o contorne
está viciado de nascença. Igualdade não é um mero direito que pudesse ser
compensado por valores e práticas benignas de assimilação e integração.
Igualdade é o valor básico da modernidade ocidental, sendo a fonte de dignidade
e reconhecimento individual em primeira instância. A possibilidade de premiar o
desempenho diferencial e traçar hierarquias alternativas e independentes da igualdade
político-jurídica existe, e é um ponto importante do debate político
contemporâneo11. Mas este não um caminho alternativo à igualdade política mas,
ao contrário, a pressupõe.
O caminho do embranquecimento é um caminho viciado porque o
branco já é, desde o começo superior, ou mais igual que o não-branco. Nenhuma
possibilidade real de embranquecimento elimina essa realidade prévia e
fundamental. Esse elemento de distinção e poder envolvido na noção de
civilização e modernidade ocidental foi percebido por Norbert Elias melhor do
que qualquer outro. Elias percebe que ser europeu, ser civilizado no sentido
europeu, tem, antes de qualquer outra, a função de produzir distinção social e,
ao produzir a distinção, legitimar a superioridade do portador dessa cultura
seja quem seja, esteja onde estiver (cf. Elias, 1976, p. 1-2).
No Brasil em vias de se tornar europeizado do séc. XIX, a
posse real ou fictícia desses novos valores que tomam a nação de assalto vai
ser o fundamento da identidade de grupos e classes sociais e a base do processo
de separação e estigmatização dos grupos percebidos como não participantes
dessa herança. A ânsia de modernização, de resto estampada na bandeira da nação
nas palavras de ordem de ordem e progresso, passa a partir dessa época a
dominar a sociedade brasileira como o princípio unificador das diferenças
sociais, o princípio em relação ao qual todas as outras divisões devem ser
secundarizadas.
É em nome dela também que passa a operar a distinção entre
os estratos europeizados dos africanos e ameríndios, com toda a sua lista de
distinções derivadas tipo doutores/analfabetos, homens de boas
maneiras/joãoninguéns, competentes/incompetentes, etc. A posse de valores
europeus individualistas vai, dessa forma, legitimar a dominação social de um
estrato sobre o outro, vai justificar os privilégios de um sobre o outro, vai
calar a consciência da injustiça ao racionalizá-la, e vai permitir a
naturalização da desigualdade como a percebemos e vivenciamos hoje.
Esse ponto é fundamental posto que permite a tematização de
um outro aspecto que permite ligar a questão da mestiçagem no Brasil à questão
democrática enquanto tal. E a obra de Gilberto Freyre, especialmente Sobrados e
mucambos, quando interpretado segundo a perspectiva que venho tentando
desenvolver nesse ensaio, pode, talvez, nos ajudar nesse desiderato. Aqui
podemos utilizar o conhecimento empírico de Freyre segundo uma perspectiva
normativa estranha a ele. De certo modo, podemos procurar usar Gilberto Freyre
contra ele próprio.
É que se percebermos, como acredito que devamos, a
reuropeização do séc. XIX como o nascimento do Brasil moderno, quando a herança
patriarcal colonial é desafiada pelo individualismo burguês e suas
instituições, então a estratégia do embranquecimento serve não apenas para
designar uma forma desta sociedade lidar com o tema do racismo. Ela pode ser
percebida também como uma metáfora da própria forma da sociedade brasileira
lidar com o tema da inclusão política enquanto tal, com o tema da cidadania
portanto.
Assim, a forma condicionada implícita no processo de
embranquecimento, o desde que europeizado, o qual lembra não por acaso e
sintomaticamente o desde que aceite os valores do pai condição, como vimos, do
sistema mouro de escravidão para a transmissão das características sociais do
pai ao filho, que Freyre havia percebido como nossa semente social peculiar
mais primordial, se repete até hoje. Do mesmo modo, poderíamos compreender, por
exemplo, o tema da cidadania regulada, desenvolvida por Wanderley Guilherme dos
Santos. A cidadania é regulada posto que definida nos termos do estado e ligada
a um sistema de estratificação ocupacional, ou seja, o desde que cumprindo as
funções tais e tais para a reprodução do sistema como um todo, e não pela
validade intrínseca de certos valores políticos fundamentais.
Mais interessante ainda me parece a possibilidade de se
poder criticar a sociologia do para inglês ver. A ambigüidade valorativa
brasileira não seria, nessa linha de raciocínio, marcada pela dominância de
valores pessoais do patriarcalismo personalista que herdamos da colônia. Ao
contrário, seria a forma específica de recepção e institucionalização do legado
individualista ocidental, como uma variável dependente, condicionada, como nos
exemplos tanto do branqueamento quanto da cidadania regulada, consubstanciados
no desde que funcional ao sistema como um todo, que podemos apreender uma
parcela significativa da nossa singularidade política e social e de nossa forma
peculiar de sermos ocidentais.
Na visão de um Roberto DaMatta, por exemplo, teríamos a
existência de dois sistemas valorativos concorrentes, sendo o elemento
individualista simultaneamente mais visível e mais superficial, e o elemento
personalista simultaneamente menos perceptível (porquanto num contexto
individualista ele é tido como ilegítimo) e mais eficaz, posto que na lógica do
você sabe com quem está falando? seria o discurso personalista e hierarquizador
que teria a última palavra, de modo a precisamente poder dirimir em última
instância o conflito entre desiguais e restaurar a paz hierárquica12.
É verdade que o discurso moderno do individualismo como
moralmente superior é o único aceito como legítimo. Mas não no sentido de que
ele é meramente superficial e encobridor das reais relações, da gramática
social mais profunda, a qual, efetivamente, regeria o contato social no mundo
híbrido brasileiro. Essa leitura da dualidade valorativa brasileira tem como
pressuposto a idéia de que o individualismo como sistema valorativo não foi
efetivamente assimilado, mas possuiria, antes de tudo, uma dimensão
instrumental, ad hoc, para inglês ver no nosso país. Essa não nos parece ser a
melhor maneira de perceber a articulação desses dois sistemas valorativos.
Ao contrário, parece ser a assimilação efetiva, conquanto
incompleta, pelo estrato dominante e pela sociedade como um todo do ideário
ocidental que permite compreender tanto a enorme força social e arregimentadora
desses valores entre os brasileiros, como o fato de que a desigualdade social
abismal entre nós seja, em tão grande medida, justificada e naturalizada.
Teríamos assim uma cultura marcada por uma singularidade perversa: uma
ocidentalização com desigualdade. A lógica das esferas jurídica e política ao
se referirem a sobre - e sub - cidadãos13, e nunca apenas a cidadãos como
pressupõe um sistema jurídico autônomo e eficaz, apenas confirma e reproduz em
escala ampliada esse dado valorativo entranhado na sociedade.
Já Gilberto Freyre percebia o processo de reeuropeização no
Brasil do séc. XIX, processo esse que tinha elementos meramente imitativos do
tipo para inglês ver, mas que tinha também elementos importantes de real
assimilação e aprendizado cultural, como um processo que marcaria uma oposi-ção
fundamental na sociedade brasileira a partir de então entre o segmento
europeizado superior e o elemento não-ocidental, que ele designa vagamente como
oriental para se referir ao conjunto de influências culturais africanas,
árabes, ameríndias, etc., socialmente inferior.
Em Freyre, a lógica da assimilação/imitação dos valores
individualistas ocidentais vai, de certa forma, substituir na nascente
sociedade urbana brasileira o princípio personalista hierarquizador operante na
sociedade escravocrata colonial. Ao invés da oposição senhor/escravo, passa a
ser determinante a filiação do indivíduo ou grupo aos novos valores
ocidentalizantes, especialmente do individualismo, como fica claro na nova
possibilidade de alcançar projeção social por meio do conhecimento, como vimos,
a forma burguesa e individualista por excelência, dada sua independência em
relação a critérios adscritivos de estamento e raça e sua determinação interna,
envolvendo necessariamente os elementos de vontade e responsabilidade
individual.
A assimilação dos valores da modernidade individualista
ocidental não é, portanto, dominado por valores personalistas como pressupõe a
interpretação da sociologia de um Brasil meramente ocidentalizado, para inglês
ver. Ela seria o próprio veículo que preside toda a hierarquia social e suas
sub-divisões. Nesse novo contexto, a estratificação social vai ser determinada
a partir da perspectiva de quem contribui para o progresso social segundo uma
hierarquia valorativa cujo suporte social são as classes dominantes
europeizadas. Estas são, por sua vez, meramente suporte de orientações
valorativas que as privilegiam na competição social, mas que não são dirigidos
por ela segundo um modelo intencional e instrumental de lidar com valores.
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Recebido para publicação em março/2000
1 A expressão para inglês ver, no Brasil, refere-se a
qualquer situação onde o intuito é induzir alguém em erro acerca de uma verdade
que não se quer mostrar. Precisamente como, no séc. XIX, pretendia-se mostrar
aos ingleses que o comércio escravocrata havia cessado, quando ela continuava
na prática, ou que, em geral, ter-se-ia atingido no Brasil um grau de
civilização maior do que era realidade.
2 Grifo meu.
3 Para Freud, tanto o sadismo quanto o masoquismo são
componentes de toda relação sexual normal desde que permaneçam como componentes
subsidiários. É apenas quando o infligir ou receber a dor transforma-se em
componente principal, ou seja, passa a ser o objetivo mesmo da relação, que
temos o papel determinante do componente patológico.
4 Para Elias, um ponto zero, um início absoluto, nesse tema,
não existe (cf. Elias, 1976, Vol. I, p. 75).
5 Ver especialmente a contribuição de Erich Fromm, no
contexto dos estudos realizados na década de 30 (Fromm, 1987).
6 Esse processo, no caso europeu, é analisado admiravelmente
por Habermas (1975).
7 A teoria das idéias fora do lugar guarda sua
plausibilidade, certamente, apenas num registro sincrônico. A partir de uma
ótica diacrônica, percebemos que essas idéias seriam melhor designadas como à
procura de um lugar, o qual, aliás, logo encontraram sendo o individualismo, e
por conseqüência o liberalismo, um componente constitutivo da realidade
brasileira desde então.
8 Antônio Sérgio Guimarães me chamou atenção para esse
aspecto fundamental do raciocínio Freyriano.
9 Todos os grandes clássicos das ciências sociais souberam
compreender a tremenda revolução, em todos os aspectos da existência humana,
que a influência dessas instituições acarreta. Desde a abstração real do
trabalho em Marx, à entronização da razão instrumental em Max Weber, ou a
redefinição da subjetividade em todas as suas dimensões a partir do impacto da
economia monetária em George Simmel, ou ainda a mudança estrutural nas formas
de dominação, especialmente a constituição do estado moderno com seu monopólio
da violência física, e sua influência na psique moderna, em Norbert Elias.
10 Esse tema é um dos fios condutores do livro de George
Reid Andrews (cf. Andrews, 1991, p. 54-90).
11 Esse é um ponto conspícuo de certa tendência teórica da
sociologia e da filosofia contemporânea, que poderíamos denominar de teoria do
reconhecimento social. Axel Honneth procurou estabelecer formas distintas
embora complementares de reconhecimento social. (Honneth, 1992). Outras figuras
de destaque nessa vertente seriam Charles Taylor e Nancy Fraser.
12 DaMatta desenvolve seu argumento com mais clareza no seu,
sob vários aspectos genial, Você sabe com quem está falando? (DaMatta, 1981,
especialmente p. 162-169 e 183-189).
13 A linguagem de sobre - e sub - cidadãos é de Marcelo
Neves (1994).
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Print version ISSN 0103-2070
Tempo soc. vol.12 no.1 São Paulo May 2000
http://dx.doi.org/10.1590/S0103-20702000000100005
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