Euclides da Cunha sociólogo
Indaguemos, de início, os fundamentos de uma possível
sociologia euclidiana
para, em seguida, analisar os seus princípios. Lembremos
antes do mais que a fundamentação
científica d’Os sertões visa inicialmente a explicar o
comportamento dos
fanáticos de Canudos e o perfil de seu chefe, Antônio
Conselheiro. Para compreender
um acontecimento histórico, Euclides pesquisa a psicologia
dos protagonistas;
para compreendê-la, vai até as influências da raça e do meio
geográfico. Esquema que
hoje nos pareceria demasiado mecânico, porque hoje, em
sociologia, damos relevo a
fatores de ordem especificamente social, mas que no seu tempo
era de preceito,
porque correspondia às concepções, então dominantes, do
naturalismo científico.
Vejamos a sua posição dentro desta corrente, em que se
enquadrou com entusiasmado
fervor.
O papel decisivo é atribuído por ele, como é notório, ao
meio físico e à constituição
racial. Uma leitura cuidadosa d’Os sertões, completada pela
dos capítulos sobre
a Amazônia, em À margem da história, mostrará, porém, que
distinguia matizes na sua
influência sobre a sociedade. Assim, veremos que para ele a paisagem geográfica e o
clima têm importância preponderante quando se trata da
distribuição, gênese e configuração
dos grupos humanos, avantajando-se a influência da raça no
que diz respeito
à estrutura psicológica e ao comportamento dos indivíduos.
Por outras palavras,
o meio físico age com predominância sobre a evolução do
grupo; a raça, sobre
o comportamento coletivo. Não se julgue, porém, que isole um
do outro os dois
grandes fatores.
É conhecida a sua classificação dos três tipos em que se
diferenciou a sociedade
sertaneja e que é uma contribuição positiva para a nossa
história social: a sociedade
bandeirante das cabeceiras do São Francisco, a sociedade
missioneira do seu
curso final e a sociedade pastoril das suas regiões médias.
Todas com a mesma base
étnica — o cruzamento do europeu com o indígena — mas
instaladas em meios diversos.
Eis as suas palavras:
Quem considera as povoações do São Francisco, das nascentes
à foz, assiste
à sucessão dos três casos apontados. Deixa as regiões
alpestres, cidades alcandoradas
sobre serras, refletindo o arrojo incomparável das
bandeiras; atravessa depois os
grandes gerais, desmedidas arenas feitas à sociedade rude,
libérrima e forte dos vaqueiros;
e atinge por fim as paragens pouco apetecidas, amaninhadas
pelas secas,
eleitos aos roteiros lentos e penosos das missões [...].
O meio físico, aí, propiciou três tipos sociais diversos,
numa população inicialmente
uniforme; mais ainda: incidiu poderosamente, não apenas na
organização
social e na atividade econômica, mas na diferenciação
étnica. No mestiço inicial, cruza
mais ou menos uniforme de branco e índio, selecionou o
subtipo propriamente
nordestino. Enquanto o mameluco da foz e da nascente
prosseguiam na mistura ver-
tiginosa de sangues (com as diversas etnias negras, com
novos contingentes brancos)
o do sertão mediano depurou a mestiçagem inicial num tipo
estável, em que se estabilizaram,
igualmente, os caracteres psíquicos. A instabilidade do
mestiço, que, para
Euclides, tendia a se estabilizar em marcha à ré, ou seja,
retornando às peculiaridades
dos elementos inferiores da mistura, foi compensada graças
ao isolamento imposto
pelo meio físico. E o tipo do sertanejo se diferenciou, em
nosso caos étnico, como
uma resultante de componentes biogeográficas.
Não é o momento de insistir nas lacunas do determinismo
euclidiano, no
apego por vezes exagerado aos fatores mesológicos; ou da
antropologia física, não
raro imaginosa e, algumas vezes, contraditória. Passemos,
desde já, ao aspecto propriamente
sociológico do seu pensamento, onde há análises justas e
penetrantes.
Pouco atrás escrevi a palavra isolamento, em que desejo
insistir, porque é uma
das chaves da sociologia de Euclides. Como acabamos de ver,
para ele a diferencia-
ção étnico-social do sertanejo se deu em virtude da
influência do meio; ora, este agiu
como fator de segregação, isolando-o das misturas raciais e
do convívio com as populações
do litoral. Todos se lembram das páginas em que é descrita
n’Os sertões a
força repulsiva do semideserto baiano, repelindo para Oeste
e para o Norte as bandeiras
e povoadores vindos do Sul, barrando os que vinham de Leste.
Fechado nele,
desenvolveu-se o sertanejo típico, filho da segregação,
isolado do resto do País. No
entanto, erra quem julgar, apressadamente, que estamos,
segundo Euclides, ante um
fenômeno de natureza puramente geográfica. Qualquer análise
mais apurada desde
logo revela que, sob sua pena, o conceito de isolamento é
também sociológico. É
preciso, com efeito, distinguir o isolamento - causa,
forçado pelo meio, do isolamento
- efeito, tipo específico de vida social, definidor de uma
cultura segregada e por
sua vez fator decisivo da organização social. Além disso,
discriminando os fatores do
isolamento, e temperando as influências do meio físico,
Euclides estuda dois fatores
eminentemente soci o econômico e o político. Eis as suas
palavras:
Causas muito enérgicas determinaram o insulamento e a
conservação do autóctone:
[...] Foram, primeiro, as grandes concessões das sesmarias,
definidoras da
feição mais durável do nosso feudalismo tacanho [...] A
carta régia de 7 de fevereiro
de 1701 foi, depois, uma medida supletiva desse isolamento.
Proibira, cominando
severas penas aos infratores, quaisquer comunicações daquela
parte dos sertões com
o Sul, com as minas de São Paulo [...] Ora, além destes
motivos sobreleva-se, considerando
a gênese do sertanejo no extremo Norte, um outro: o meio
físico dos sertões
em todo o vasto território que se alonga do leito do
Vasa-Barris ao do Parnaíba,
no Ocidente.
Vê-se também, pelo trecho, que o fator racial foi
contrabalançado, no processo
de diferenciação do sertanejo, pelo fator isolamento, em que
se enfeixam
componentes raciais e geográficos. Tanto, ou mais
importantes que as conseqüências
antropológicas, são as conseqüências sociais do fenômeno.
Como sabemos, um dos maiores fatores da evolução social é a
difusão de
cultura, a comunicação de traços culturais de um grupo a outro. Euclides ilustra este
fenômeno com eloqüência, ao descrever a autonomia cultural
do caboclo nordestino.
Premido por um meio adusto, isolado da civilização pelo
deserto, pelo regime de
propriedade, pela política metropolitana; isolado do seu
semelhante pela fraca densidade
demográfica — voltou-se sobre si mesmo e elaborou, com os
parcos elementos
de que dispunha, o equipamento mínimo para sobreviver. Os
sertões descrevem a sua
roupa de couro, espécie de couraça; descrevem os poucos
objetos que fabrica — a
rede de caroá, a bolsa de caça, a sela tosca, o cacete cheio
de chumbo; descrevem os
que recebeu do litoral — foice, faca de ponta, espingarda,
bacamarte, esporas; falam
da sua dieta bárbara, de passoca ameríndia; da arca e dos
dois ou três tamboretes que
lhe mobiliam a casa frágil. Aí está o acervo da cultura
material. Da cultura espiritual,
um catolicismo adaptado ao meio, misturado de fetichismo,
consistindo em ritos
propiciatórios — os mais necessários para quem luta contra a
seca — e chegando a
criar um santo próprio, um santo profissional: São Campeiro.
Esta cultura rude, fruto da segregação social, não pode, por
isso mesmo, evoluir.
Tendo criado o mínimo para ajustar-se ao meio, o sertanejo
se aferra a este mí-
nimo, enquanto as populações litorâneas, uma centena de
quilômetros além, estão
centenas de anos à sua frente. É o caso típico daquilo que,
depois de Ogburn, se
chama em sociologia demora cultural.
Euclides analisa largamente o fenômeno, a fim de mostrar sua
conseqüência
lógica: o conflito. De fato, quando uma cultura em estado de
demora entra bruscamente
em contacto com padrões evoluídos, surge uma situação de
antagonismo, que
se resolve na luta pela preservação dos valores antigos, de
um lado, superimposição
de valores novos, do outro. O desfecho é quase sempre
aceleramento de mudança na
cultura dominada, com a difusão maior ou menor dos traços da
cultura dominante. É
o que vemos todos os dias nos fastos na colonização
européia; foi o que Euclides
viu, estudou e compreendeu na trragédia de Canudos.
Se no estudo da configuração geral da sociedade sertaneja
ele erige em fio
condutor o fenômeno do isolamento cultural, no estudo mais
restrito da atividade
social dos seus membros, podemos dizer que adota o critério
da intermitência segundo
Von Wiese, os fatos sociais se processam numa certa direção
e conforme um
certo ritmo; a direção seguida pelos fenômenos da sociedade
sertaneja foi a do isolamento,
que condiciona a sua evolução; o ritmo, seria o da
intermitência. Todos lembramos
o contraste, assinalado por Euclides em página famosa, entre
a postura habitual
do caboclo — mole, sem aprumo — e a que assume nos momentos
de exceção:
o sociólogo nos diz que o caboclo precisa poupar energia
para as ocasiões decisivas.
Esta alternância de atitudes aparece a cada passo na parte
sobre “O Homem”. No
meio físico, é a seca e a bonança; no homem, a presteza e a
preguiça; no grupo, a
humildade mística e o assomo sanguinário; nas ocupações, a
monotonia do pastoreio
e o turbilhão das vaquejadas. Sob a pena de Euclides,
intercadência, intermitência, intercorrência,
são vocábulos diletos, tanto quanto insulado, insulamento —
estes definindo a
direção, aqueles o ritmo da vida social.
Com estas considerações quis mostrar: 1. que se podem
desentranhar da obra
de Euclides da Cunha critérios especificamente sociológicos
de interpretação; 2. Que
tais critérios aparecem concretizados em alguns princípios
diretores. Falemos, agora,
do aspecto por ventura máximo do seu livro: a interpretação
psico-sociológica do
sertanejo.
Do ponto de vista sociológico, este aspecto d’Os sertões
constitui um estudo de
comportamento coletivo, preso à influência direta do meio e
dos caracteres psicoló-
gicos da raça. Mas comportamento coletivo anormal, não
apenas porque se trata de
uma conjuntura de crise, como porque o autor enxerga, na
condição psico-social do
sertanejo, uma constante por assim dizer de desvario, devida
ao ritmo intermitente,
que assinala a sua existência. Mentalidade primitiva,
homogeneidade cultural, sincretismo
religioso, brutalidade dos elementos – combinam-se para
proporcionar tal
desvario, cuja válvula normal é o cangaço, mas que explode
periodicamente em crise
de misticismo.
Para Euclides, a população sertaneja é um bloco étnico e
cultural; uma sociedade
insulada em cujo corpo não se processou a divisão intensa do
trabalho social,
diferenciador e enriquecedor. Ora, sabemos que quanto mais
homogênea é a sociedade,
tanto mais facilmente se estereotipa o comportamento,
impondo-se os seus
padrões, poucos e fortes, como norma coletiva. Na multidão,
forma embrionária de
sociedade, a homogeneidade é máxima, tornando-se máximas a
coesão e a sugestibilidade.
Para Sighele, e Tarde na primeira fase das suas idéias, a
multidão era dotada de
impulsos acentuadamente maus. Euclides parece convir com
esta generalização falha,
que já antes de aparecer o seu livro era contrariada pelo
próprio Tarde e, no Brasil,
por Nina Rodrigues. Vemos, com efeito, que ele trata a
sociedade sertaneja como se
fosse imensa multidão. Dota-a das mesmas tendências,
simplifica as suas disparidades,
unifica-a como um bloco sólido na participação da mesma
consciência coletiva.
Em tal sociedade, as ondas de misticismo rompem com toda a
força, porque, como
nas multidões, as forças conscientes são afogadas pela massa
da emotividade desencadeada.
Libertam-se os automatismos, derribando o controle vacilante
da razão, e as
tendências primitivas das etnias inferiores, contidas pelo
equilíbrio instável da mestiçagem,
irrompem furiosas.
Para explicar a figura do Conselheiro, analisa esses
mecanismos de psicologia
coletiva. A sua tese é que ele em si nada tinha de preeminente, pois apenas encarnava,
dando-lhe corpo, todo o psiquismo incoordenado das
populações sertanejas. Mas,
exprimindo-as, reforçava o seu ímpeto, dava-lhes razão de
ser, mostrando-lhe como
que o próprio retrato, sintetizado numa só pessoa. O quadro
de Euclides é impressionante
e grandioso, embora já não satisfaça às exigências de
objetividade da ciência
social. Para traçá-lo, foi buscar elementos no arsenal
rapidamente envelhecido da
escola antropológica italiana, da psicologia das multidões e
dos povos. Assim foi que
superestimou as constantes mórbidas da personalidade, além
de simplificar o problema
da consciência coletiva e da liderança. Lendo-o, tem-se a
impressão de que a
sociedade sertaneja funciona como em um bloco automático, à
maneira de um
monstruoso indivíduo. No calor da sua visão, tritura os
possíveis coeficientes de variabilidade,
afasta as discrepâncias, talha, simplifica, e nos dá um
panorama quase
onírico de psicopatologia social. Além disso, estende os
seus conceitos para além do sertão. Ao analisar as reações da opinião pública
no resto do País, procede com o
mesmo arbítrio imperioso; não vê grupos, não discerne o
contraponto da organiza-
ção social: tudo, para ele, se apresenta sob as espécies de
enorme multidão, simplificada,
percorrida pelos arrepios da anormalidade coletiva. Mais
ainda. Faltou-lhe visão
sociológica em mais de um ponto: assim, não percebeu que
Canudos, em vez de representar
apenas um fenômeno patológico, isto é, de desorganização
social, significava
também, senão principalmente, desesperada tentativa no
sentido de uma nova
organização social, uma solução que reforçasse a coesão
grupal ameaçada pela interferência
da cultura urbana.
Com tudo isso, porém, e talvez por causa disso tudo, a sua
interpretação não
é menos genial. Muito mais que sociólogo, Euclides da Cunha
é quase um iluminado.
As simplificações que operou, na síntese das grandes visões
de conjunto, permitem-lhe
captar a realidade mais profunda do homem brasileiro do
sertão. Por isso há
nele uma visão por assim dizer trágica dos movimentos
sociais e da relação da personalidade
com o meio — físico e social. Trágica, no sentido clássico,
de visão agô-
nica em que o destino humano aparece dirigido de cima. O
homem euclidiano é o
homem guiado pelas forças telúricas, engolfado na vertigem
das correntes coletivas,
garroteado pelas determinações bio-psíquicas: — e no
entanto, elevando-se para pelejar
e compor a vida na confluência destas fatalidades. Semelhante
visão não se confunde
com o mecanicismo de muitos deterministas do seu tempo, ou
anteriores a ele.
Em Ratzel, ou em Bukle, não há tragédia: há jogo mútuo quase
mecânico entre o
homem e o meio. Em Euclides, porém, seu discípulo, podemos
falar de sentimento
trágico, porque nele as determinantes do comportamento
humano, os célebres fatores
postos em foco pela ciência, no século XIX, são tomados como
as grandes forças
sobrenaturais, que movimentam as relações dos homens na
tragédia grega. Só o
compreenderemos, pois, se o colocarmos além da sociologia —
porque de algum
modo subverte as relações sociais normalmente discriminadas
pela ciência, dando-lhes
um vulto e uma qualidade que mente discriminadas pela
ciência, dando-lhes
uma qualidade que, sem afogar o realismo da observação,
pertencem antes à categoria da visão.
ANTONIO CANDIDO
http://revistas.iel.unicamp.br/index.php/remate/article/viewFile/3553/3000
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